O Brasil comumente é “vendido” como um país com múltiplas regiões e diversidade na produção de alimentos. Grãos, frutas, legumes, frango, carne, tudo para alimentar a população com sabor, saúde e abundância. A propaganda no intervalo dos noticiários na TV, das novelas ou das salas de cinema repete com imagens coloridas o sucesso do agronegócio brasileiro: “Agro é Tec”, “Agro é Pop”, “Agro é Tudo”. Será? O agronegócio é um dos pilares da economia de muitos países do Sul global, e em especial da brasileira. Corporações nacionais do setor agroalimentar estão entre as maiores do mundo, conforme você poderá verificar nas próximas páginas. A história desse sucesso, contudo, não é tão singela como fazem crer equipes de marketing bem remuneradas. É o que mostram dados e informações aqui reunidos, análises dos players mundiais do negócio da alimentação, com ênfase na realidade brasileira. Evidenciamos que o campo tem sido marcado pela concentração de terras nas mãos de cada vez menos produtores, pela expansão de plantações de monocultivos – especialmente soja, milho e cana-de-açúcar – e pelo consequente aumento do uso de agrotóxicos, perda de qualidade do solo e redução da biodiversidade. O Brasil do “Agro Tec” tornou-se campeão mundial na produção de alimentos geneticamente modificados em uma reconfiguração de mercado bem pouco democrática ou transparente. Cada vez mais, os consumidores não têm nem como saber quais produtos contêm substâncias transgênicas. A legislação brasileira, que chegou a obrigar empresas a informar na embalagem a presença de ingredientes geneticamente modificados, sofreu retrocessos coordenados pela Bancada Ruralista e perdeu efeito prático.

O “Agro é Pop”, mas quem não tem acesso a feiras ou mercado de produtos orgânicos ou agroecológicos, quem não pode pagar por alimentos livres de veneno, acaba refém da indústria alimentícia. Os supermercados comuns dependem da oferta de conglomerados cada vez mais poderosos, que nem sempre priorizam a qualidade dos alimentos ou a saúde dos consumidores. Falta transparência em um campo em que os setores público e privado se confundem, onde política e interesses econômicos se misturam o tempo todo.

A concentração do mercado de produção e distribuição de alimentos na mão de um número cada vez menor de conglomerados transnacionais não é uma realidade exclusiva do Brasil. Com dados, infográficos, cifras e mapas, o Atlas do Agronegócio demonstra que este é um fenômeno global. Ao apresentar um quadro geral das transformações em curso no mundo, a publicação evidencia os limites socioambientais de um sistema onde a prioridade é sempre aumentar a produtividade aceleradamente e a qualquer custo. A presente edição também detalha a tendência de concentração do poder e das terras, em detrimento das condições de vida e de trabalho da agricultura familiar e camponesa, de povos indígenas e de comunidades tradicionais. Cortes sociais agravam conflitos socioambientais em um contexto de criminalização, perseguições e violação de direitos de quem luta pela terra – ou pela mera existência.

O primeiro passo para construir políticas públicas que visem ao interesse coletivo e para se engajar na discussão é entender as estruturas de poder, os modelos de negócio e de desenvolvimento que o setor representa e as estratégias de crescimento das empresas transnacionais. „Apropaganda do agronegócio não menciona, mas o Brasil é hoje o país onde mais defensores dos territórios e do meio ambiente são assassinados. No campo, o país segue a tendência mundial de encolhimento dos espaços para atuação engajada e crítica da sociedade civil. Assim como em outras partes do planeta, as possibilidades de diálogo e debate são encolhidas; a democracia se fragiliza no momento em que parece mais necessária do que nunca.O setor se apresenta como símbolo de modernidade e eficiência, com domínio pleno de diferentes tecnologias, incluindo o que há de mais avançado no mundo digital no desenvolvimento da agricultura de precisão (precision agriculture, em inglês). Na prática, porém, as novas tecnologias não têm se revelado tão eficientes assim, pelo menos não quando o assunto é defesa da vida. O Atlas relaciona a disseminação de algumas das novas tecnologias à perda de fertilidade de solos, à redução de biodiversidade, à morte de oceanos e ao aumento crescente da emissão de gases de efeito estufa. Na parte social, a nova agricultura está relacionada à perda de postos de trabalho no campo sem oferecer alternativas.

O “Agro é Tudo” e avança com apetite concentrando-se não só sobre as terras, mas também sobre todas as etapas relacionadas ao complexo agroindustrial. O mercado das sementes, por exemplo, afetado por fusões bilionárias, passou a ser dominado por quatro empresas transnacionais. São companhias que hoje têm o poder de influenciar e até definir preços e o que é produzido em cada local. A lógica da concentração, de poucas empresas tomando decisões que afetam milhões de pessoas, se repete na comercialização e distribuição, assim como nos mercados de veneno e de fertilizantes químicos.Mesmo quem tenta escapar desse sistema de alimentação industrial corre o risco de acabar engolido por ele. Aos poucos, ao mesmo tempo em que avança a conscientização sobre mudanças climáticas e a preocupação com o corpo e o bem-estar, surge um novo nicho de mercado em que alimentos saudáveis são apresentados como produtos “gourmet”.

O Atlas do Agronegócio foi apresentado em sua primeira edição em 2017 na Alemanha por um conjunto de organizações que defendem a justiça socioambiental global. No Brasil, duas dessas organizações, a Fundação Heinrich Böll e a Fundação Rosa Luxemburgo, juntaram forças para traduzir, atualizar, adaptar e contextualizar informações reunidas no original, acrescentando vários artigos com relevância especial para a sociedade brasileira. Esperamos que a publicação contribua para melhor compreensão das relações entre a economia globalizada e quem controla o que comemos.

Annette von Schönfeld
Fundação Heinrich Böll
Diretora do escritório Brasil

Gerhard Dilger
Fundação Rosa Luxemburgo
Diretor do escritório regional Brasil e Cone Sul.

Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/atlas_agro_final_06-09.pdf