São Paulo, 14 de maio de 2019.

Excelentíssimo Sr. Ministro da Saúde

Luiz Henrique Mandetta,

Diante do exposto pelo senhor em entrevista concedida à rádio CBN em 09 de maio de 2019, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, coalizão de organizações da sociedade civil, vem a público manifestar seu repúdio em relação às declarações sobre a implementação da rotulagem nutricional frontal no Brasil.

Participamos ativamente do processo de revisão das normas de rotulagem nutricional de alimentos conduzida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é a agência reguladora com competência legal e técnica para tratar o tema, desde 2014 por meio de nossas organizações. Integramos o Grupo de Trabalho, fornecemos subsídios técnicos, apresentamos proposta de aprimoramento da rotulagem nutricional acompanhada de evidências científicas que a embasam e contribuímos na etapa de Tomada Pública de Subsídios (TPS). O processo regulatório seguiu, até o momento, todas as etapas previstas para análise de impacto regulatório, de forma a evitar quaisquer questionamentos técnicos e judiciais, inerentes a um processo de tamanha envergadura como esse. Registramos a condução,  transparente e dialogada, segundo regras previstas, adotada pela Agência, com todos os setores interessados incluindo organizações da sociedade civil, pesquisadores acadêmicos, representantes do governo e do setor regulado.

O Ministério da Saúde participou de todo o processo regulatório e tem conhecimento de todos os resultados e encaminhamentos da Anvisa até o presente momento, tendo contribuído tecnicamente em todas as etapas. Desta forma, nos surpreende profundamente  a declaração que Vossa Excelência deu à CBN, apoiando e declarando como o mais apropriado para a realidade brasileira o modelo de rotulagem frontal italiano: “Há um grupo maior dentro do ministério, eu estou deixando eles debaterem, indo em direção ao informativo. Eu acho que é um modelo mais italiano, onde a Itália tem sido a maior protagonista.

O processo em andamento foi priorizado na agenda regulatória, após ampla consulta pública como estabelece o regulamento da Anvisa, com prazo para conclusão da consulta pública em 2019, após quase cinco anos de discussões no âmbito da Agência.  Órgãos de controle, como o Ministério Público Federal (MPF), acompanham o processo e já se reuniram com o diretor-presidente, William Dib, para solicitar agilidade para conclusão do processo. Destaca-se que a iniciativa nacional segue a tendência global de adoção urgente de medidas regulatórias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para frear a grave epidemia de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis que têm, entre seus determinantes centrais, as escolhas alimentares não saudáveis.

Inúmeros estudos demonstram que medidas com a rotulagem nutricional frontal integram o elenco de boas práticas prioritárias para a redução destes problemas que acarretam enormes prejuízos sociais e econômicos para as pessoas, famílias e sistemas de saúde. Todos os documentos elaborados ao longo do processo coordenado pela Anvisa registram o conjunto de  evidências científicas que demonstram a eficácia da rotulagem frontal de advertência e o impacto populacional, que superam outras alternativas de rotulagem frontal e outras medidas que focam no indivíduo, uma vez que o sobrepeso e a obesidade requerem ações estruturais que incidam no ambiente e na saúde coletiva.

É comprovado cientificamente que os rótulos frontais estão diretamente ligados ao aumento da informação, compreensão, uso e compra de produtos rotulados, particularmente entre os consumidores que estão atentos a sua saúde. Os consumidores preferem mensagens  frontais simples e diretas que permitem visualização e compreensão rápidas. Isso permite agilidade na identificação dos produtos mais saudáveis, além de aumentar a intenção de compra destes produtos. Como o próprio Sr. Ministro reconheceu, a rotulagem nutricional adotada atualmente no Brasil é complexa e ineficaz pelo qual é urgente concluir de maneira adequada o processo de revisão.

Temos certeza que, tanto a equipe técnica da Anvisa como o Grupo de Trabalho por ela liderado, está disposto a apresentar em detalhes a V.Exa todas as etapas e resultados do que foi desenvolvido até o momento de maneira a comprovar que as manifestações públicas são inadequadas e incoerentes com as evidências científicas nacionais e internacionais produzidas livres de conflitos de interesse e tendo a saúde pública nacional e global como prioridade.

Com base nestas evidências, o Relatório Preliminar de Análise de Impacto Regulatório (AIR), elaborado pela equipe técnica da Agência, descartou a implementação do Guideline Daily Amounts (GDA) e do semáforo nutricional como modelos de rotulagem frontal, e indicou a adoção do sistema de advertências.

A Agência, após ampla revisão da literatura e análise comparativa entre diferentes propostas, reconheceu que o GDA não traz classificação nutricional dos valores declarados e, assim, não atinge ao objetivo de auxiliar o consumidor em suas escolhas. Além disso, é um modelo ultrapassado, desenvolvido nos anos 90, e que vem dando lugar a modelos interpretativos com uso de melhores recursos visuais. Já as advertências são reconhecidas como um modelo semi-interpretativo, uma evolução do modelo do semáforo nutricional,  que vem sendo adotado (Chile, Israel, Peru e Uruguai) e/ou avaliado (Canadá e Brasil) em diferentes países. As advertências reduzem a quantidade de informações disponíveis, focando apenas nos aspectos nutricionais mais relevantes para a melhoria da qualidade da alimentação e da saúde, que é o objetivo da rotulagem nutricional. Por estas características, a proposta respeita a autonomia dos consumidores para “julgar a qualidade nutricional do produto”.

É comprovado cientificamente que o sistema de rotulagem frontal denominado GDA, que é utilizado voluntariamente por muitas indústrias de alimentos no Brasil há muitos anos e defendido pelo Sr. Ministro em entrevista, não é compreendido pelos consumidores brasileiros. Um estudo de 2017, que comparou os rótulos frontais de advertência com o GDA e o semáforo nutricional concluiu que as advertências eram mais efetivas na identificação correta pelo consumidor dos produtos com alto conteúdo de nutrientes não saudáveis ​​e que os produtos com rótulos de advertência eram considerados menos saudáveis ​​pelos consumidores do que os mesmos produtos com selos GDA ou semáforo.

Com base no até aqui exposto justifica-se nosso profundo estranhamento à referência de V.Exa. ao modelo GDA, tanto pelo acúmulo nacional e internacional sobre o tema, quanto pela menção à Itália, um país que de maneira alguma é reconhecido por ter algum protagonismo neste tema e que, pelo menos não publicamente, teve qualquer envolvimento significativo com a agenda no cenário nacional, até porque este é um tema onde os interesses nacionais devem ser legitimamente protegidos. O que sim é conhecido é a pressão das grandes indústrias italianas em oposição ao modelo de advertências, uma vez que as mesmas parecem não estar comprometidas de maneira verdadeira com a saúde pública de seu país de origem e outros mercados consumidores.

A enorme resistência das grandes indústrias de alimentos e bebidas ultraprocessadas não enfraquece o  compromisso da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e inúmeras outras organizações, pesquisadores e cidadãos com a saúde pùblica do Brasil. O enfrentamento da pandemia de sobrepeso e obesidade que penaliza a vida de milhões de pessoas e onera o Sistema Único de Saúde (SUS) em 3,6 bilhões de reais por ano, requer medidas efetivas e urgentes. A regulação sanitária em defesa da saúde pública precisa ser protegida de interesses privados.

Nos causou indignação o posicionamento do Sr. Ministro contrário a todo o processo regulatório realizado até o momento pela Anvisa. Não aceitamos que os interesses comerciais e econômicos interfiram no processo regulatório, ainda mais vindo na forma de conflito de interesses, onde a própria indústria utiliza privilégios políticos para minar processos regulatórios que possam impactar nos seus interesses comerciais imediatos. A mudança de posição do Ministério da Saúde para atender o pleito de empresas reguladas coloca em risco a confiança na liderança atual do Ministério, que muito vinha apoiando essa agenda.

A sociedade brasileira não admitirá que as mudanças na gestão das instituições públicas representem também a mudança de sua missão, dos seus propósitos legais e éticos. É tempo de garantir a segurança das instituições e dos seus processos. É imperativo e urgente que o Ministério possa conduzir esse processo de forma transparente, com a responsabilidade que a agenda merece e com o seu propósito primeiro e único que é proteger e promover a saúde da população brasileira.

Por fim, gostaríamos de reforçar os diversos pedidos de audiência que foram enviados por organizações da Aliança para tratar das políticas de controle da obesidade, entre elas a revisão da rotulagem nutricional, uma vez que ainda não fomos recebidos pelo Sr. Ministro.

Comitê Gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável:
Ana Carolina Feldenheimer – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Ana Paula Bortoletto –  Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)
Elisabetta Recine – Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição/ Universidade de Brasília (OPSAN/UnB)
Glenn Makuta – Slow Food
Inês Rugani – Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)
Paula Johns – ACT Promoção da Saúde

Organizações que fazem parte da Aliança:

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1 Comment

  • byJose nunes
    Posted 15/05/2019 10:29 0Likes

    Concordo com o acima exposto e repúdio a desinformação de pessoas que assumem cargos e não procuram assessoria que lhes de respaldo . O Brasil não é um país que surgiu hoje . Tem suas raizes e sua continuidade

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