Governo do estado suspende decreto que proibia venda de alimentos não saudáveis em escolas 

Por Desirée Ruas*

*Atualização: No dia 6 de outubro de 2020 foi encaminhada uma Carta Aberta em Defesa da Lei da Cantina Saudável em Minas Gerais com a assinatura de 80 organizações e coletivos nacionais e locais ao governador Romeu Zema. No dia 8 de outubro, o Decreto 47.557 foi revogado pelo Governo de Minas, impactando o processo de regulamentação da Lei 15.072 (Lei da Cantina Saudável) e a promoção da alimentação escolar saudável no estado. Saiba mais aqui.


Algumas horas após entrar em vigor, na última segunda-feira (24), o
Decreto Estadual 47.557 que estabelece as regras para a promoção da alimentação adequada e saudável nas escolas públicas e privadas de Minas Gerais foi suspenso pelo governador do estado, Romeu Zema. 

De acordo com o decreto, suspenso por 240 dias, a venda de alimentos com alto teor de calorias, gordura saturada, gordura trans, açúcar livre e sal ou com poucos nutrientes estaria vetada nas escolas de Minas Gerais. A proibição se estendia a serviços próprios da escola ou terceirizados, como cantinas e lanchonetes, e vendedores ambulantes que ficam na porta das escolas. 

Ficaria também proibida a exposição, nas escolas, de materiais publicitários que tenham como objetivo persuadir crianças e adolescentes para o consumo desses produtos, incluindo aqueles que utilizam personagens, apresentadores infantis, desenhos animados, entre outros materiais com apelo a esse público.

De acordo com o governo, a suspensão ocorreu pelo entendimento de que o tema merece uma análise criteriosa pelos técnicos do estado, como análise do impacto social e econômico do decreto, dentre outros aspectos. 

Após a suspensão do decreto, restam algumas questões: Quem perde com isso? A quem interessa a permanência dos alimentos ultraprocessados dentro das escolas?  Por que com a suspensão do decreto fica definida a criação de um grupo de trabalho sem a participação efetiva da sociedade civil?

Muitas perguntas e uma certeza: o foco da mídia na proibição da venda de guloseimas na porta da escola pelos vendedores ambulantes deixou de lado a essência do decreto e a responsabilidade coletiva pela mudança no padrão de consumo das crianças. 

Os ambulantes podem, e devem, ser aliados na promoção da saúde e da alimentação adequada e saudável. Tanto que ações para que o comércio da porta da escola pudesse ser mais saudável já estavam em curso, inclusive com a participação de diversas organizações da sociedade civil. Além disso, o decreto não impedia o trabalho dos vendedores ambulantes, mas buscava um maior distanciamento da porta da escola. 

Por que essa lei é urgente? 

Se na sala de aula os alunos aprendem sobre os riscos de uma alimentação rica em açúcar e gordura, qual é o sentido de a cantina vender este tipo de alimento, principalmente num contexto onde as compras são feitas pelos próprios alunos, sem a mediação dos responsáveis? O que se come na escola não representa um consumo esporádico, pois crianças e adolescentes passam boa parte do dia dentro do ambiente escolar. 

Se temos índices crescentes de sobrepreso e obesidade infantil no estado, precisamos ter uma postura de enfrentamento desta realidade. Se as crianças consomem em casa alimentos não saudáveis, não significa que a escola tenha que manter o mesmo padrão. 

O ambiente escolar deve ser o espaço da mudança, da transformação, do olhar crítico e do aprendizado constante. A mudança dos hábitos alimentares das famílias depende também do trabalho dentro das escolas, assim como o combate ao sedentarismo e outras ações pela saúde.

Qual a relação dos vendedores ambulantes com o ambiente escolar?

O entorno da escola é um espaço que tem comunicação muito intensa com os alunos. Se o trânsito é ruim, se há muito barulho, se o ar é poluído, se há muita violência, se não há áreas verdes, a escola também será impactada. E se o entorno só oferece alimentação não saudável, o efeito também será sentido dentro da escola.

Se esse ambiente tem um peso importante para a promoção da alimentação adequada e saudável, como ignorar o comércio? Os vendedores ambulantes sempre estão nas proximidades das escolas, oferecendo balas, pirulitos, chicletes e refrigerantes, o que facilita o acesso a esse tipo de produto. Contudo, o decreto apenas limita as vendas nas portas das escolas, de forma a ser coerente com os limites estabelecidos no ambiente escolar.

No entanto, a questão dos vendedores ambulantes dentro do contexto da promoção da alimentação adequada e saudável vem sendo pensada cuidadosamente por algumas instituições e acompanhadas de perto pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável – núcleo Minas Gerais.

É preciso pensar, sim, em alternativas para esses trabalhadores, mas abrir mão do decreto é prejudicar a comunidade escolar e as estratégias estaduais de promoção da alimentação e controle da obesidade e do excesso de peso que acometem em torno de 33% das crianças brasileiras.

Por que o decreto mineiro é tão inovador e completo?

Temos muitos motivos para defender o Decreto 47.557: ele não só tem o Guia Alimentar para a População Brasileira como referência, como também fala da necessidade de formação da comunidade escolar com orientações sobre a rotulagem e perfil nutricional dos alimentos e determina que a publicidade deve ficar longe do ambiente escolar.

É um grande avanço reconhecer os impactos da comunicação mercadológica sobre as crianças e os adolescentes e entender que o ambiente escolar é um espaço para a crítica ao consumo, e não para o seu estímulo. 

Em um mundo que facilita cada vez mais o acesso a alimentos ultraprocessados, como refrigerantes, sucos artificiais, doces e salgadinhos, são urgentes todos os esforços para reduzir o consumo desses produtos que contribuem para o aumento da frequência de obesidade e doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, doenças do coração e diversos tipos de câncer.

E com o fim do prazo de adaptação e início do “agora é pra valer”, a expectativa era de que as escolas começariam a fazer o que esperamos desde 2004: comercializar apenas alimentos saudáveis, que fazem parte de uma lista específica, definida por um grupo de trabalho. Sairiam os sucos de caixinha, o sanduíche de presunto e os bolinhos industrializados e entrariam os sucos naturais, as frutas e outros alimentos.

Desafios devem ser superados

O desânimo com a suspensão do decreto foi grande, pois a luta por políticas públicas que promovam a alimentação adequada e saudável em Minas Gerais já dura 15 anos. Desde 2004, o estado possui uma lei que dispõe sobre a promoção da educação alimentar e nutricional nas escolas públicas e privadas, mas que esperava por uma regulamentação. 

Foram anos de espera, de muito diálogo com diretores de escolas, com donos de cantinas, com órgãos do governo, muitas rodas de conversa com famílias e movimentos pela infância. Encontramos muitos desafios, mas também muitos diretores, coordenadores, professores e familiares que arregaçaram as mangas para fazer a mudança acontecer, buscando os caminhos para que o refrigerante e os pacotes de salgadinhos não tivessem espaço dentro das escolas. 

Com uma regulamentação bem completa e abrangendo toda a educação básica do estado, Minas Gerais estava sendo considerado um estado referência para todo o país no quesito da promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar. 

Reconhecemos as dificuldades do caminho, a questão da preservação do trabalho de diversos vendedores e entendemos que, para além da existência da legislação, temos também outros desafios da implementação.

Contudo, resta a dúvida sobre quem pode ser contra as ações para promover a alimentação escolar adequada e saudável, livre de interesses comerciais, nas escolas de Minas Gerais. Com a suspensão do decreto, uma questão urgente é adiada. 

Agora, é necessário que as famílias abracem a causa e entendam que toda mudança exige esforço, e que a lei não substitui o papel dos pais, mães e responsáveis. E também não retira a necessidade de diálogo com crianças e jovens.

Sem o esforço coletivo e contínuo das famílias, ativistas, escolas, profissionais de saúde, organizações, movimentos e governos, não vamos conseguir vencer a avalanche de alimentação não saudável e o marketing que existe sobre todos nós. Esperamos cada vez mais cidades e estados unindo esforços pela infância, pela promoção da saúde, pelo combate ao consumo de ultraprocessados, contra a sedução do marketing e a pressão dos grupos ligados à indústria de produtos alimentícios.

*  Desirée Ruas é jornalista, especialista em Educação Ambiental e Sustentabilidade, co-idealizadora do Movimento BH pela Infância e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo – Rebrinc e da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável – Núcleo MG.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Tags:

Deixe uma resposta