17/09/2020 - Blog Notícias
Por: Assessoria de comunicação da Ação Coletiva Comida de Verdade, foto de capa: Acervo Tânia Aguiar
Diversidade alimentar, segurança hídrica, regeneração dos solos e comida de verdade na mesa da população. Esses são alguns dos benefícios apresentados pelo desenvolvimento de Sistemas Agroflorestais (SAFs) no Distrito Federal (DF), coração político-institucional do Brasil, e entorno. É pelas mãos das famílias agricultoras que as agroflorestas têm se potencializado em uma região que, além de geograficamente complexa para a produção de alimentos, traz consigo uma trajetória de intensa urbanização, monoculturas, agronegócio em larga escala e produção de commodities para exportação, entre outras atividades de forte impacto socioambiental.
Os Sistemas Agroflorestais (SAFs) ou Agroflorestas são técnicas de manejo da terra com base nos princípios da agroecologia, unindo no mesmo espaço a produção de alimentos saudáveis e de recursos vegetais através de consórcios. Nesse sistema de plantio, as espécies são produzidas a partir de uma dinâmica em que uma planta contribui com o crescimento da outra e todas elas adubam e regeneram a terra. Assim como as trocas realizadas naturalmente pelas plantas produzidas em agroflorestas, são os sistemas de trocas e atuação em rede entre coletivos de agricultoras e agricultores que guiam os percursos da alimentação saudável, da semente ao prato de comida.
É o caso das agrofloresteiras do grupo “Mulheres no campo em ação”, no Assentamento Gabriela Monteiro, em Brazlândia, cidade-satélite localizada a 50 km do centro de Brasília. Com uma impressionante diversidade de plantio, elas realizam mutirões de cuidado com o solo, criam sistemas próprios de irrigação, comercializam em feiras livres, organizam pontos de entrega pelo whatsapp e cuidam de uma miniagroindústria, onde beneficiam os produtos. O espaço onde as mulheres se reúnem para realizar a alquimia do alimento também serve para a salvaguarda de sementes crioulas.
“Nós plantamos de tudo um pouco, com muito mais diversidade do que pessoas que têm terras com bem mais hectares. A agrofloresta nos permite plantar de tudo e ainda ter um controle natural das pragas. E quanto mais a gente planta, mais o solo fica forte. Aqui é desperdício zero, porque o que não vendemos in natura, beneficiamos. E o que não dá pra beneficiar, vira adubo, retorna tudo pra terra”, afirma a agricultora Ilnéia Alves Rocha, moradora do Assentamento Gabriela Monteiro.
Em parceria com outras cinco mulheres, Ilnéia montou uma miniagroindústria onde produzem farinhas, chips, bolos, tortas, geleias, frutas desidratadas, entre outros produtos a partir do próprio plantio. A sociedade entre as plantas garante o solo forte e a excelente variedade de plantio. Hortaliças, tomate, chuchu, inhame, mandioca, abobrinha, quiabo, jiló, berinjela, banana. Alimentos que são comercializados à Feira Ponta Norte e a outras feiras menores, e viram produtos beneficiados pelas mãos das agrofloresteiras.
O tempo da abundância
De acordo com Ilnéia, os princípios são o ponto forte da caminhada. Foi com união, determinação e respeito aos ciclos da natureza que não só as agrofloresteiras do coletivo “Mulheres no campo em ação”, mas todas as famílias moradoras do assentamento, conseguiram superar os desafios iniciais à produção, relacionados principalmente à irrigação do solo e à adubação da terra.
“Nós temos um princípio, que é respeitar a época do alimento, nós não forçamos nada com insumos. Não faz sentido forçar o abacateiro a produzir o ano todo, ele tem o tempo dele. Quando viemos para esse terreno, via reforma agrária, ele estava devastado pelo uso intenso de agrotóxicos. Somos 22 famílias, então fizemos análise de solo e trabalhamos a recuperação dessa terra com a criação da agrofloresta. Foi trabalhoso, porque também temos que lidar com a escassez de chuvas. Então, com assessorias técnicas e orientação da Emater, implementamos cisternas para fazer a coleta nas épocas de chuva e usamos gotejamento. Também evitamos o desperdício. A água que usamos para processar os alimentos passa por uma filtragem e depois retorna para as plantas”, explica Ilnéia.
Implementar agroflorestas é uma especialidade do permacultor Osmany Neto, morador do Núcleo Rural Radiobrás e integrante da CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura – Casa Fazenda Bella. Participante ativo dos mutirões de implementação dos SAFs em Brazlândia, Osmany também destaca o respeito à sazonalidade dos alimentos como um fator fundamental para um solo saudável e a garantia de maior diversidade de produtos.
“Quando você se debruça a entender como funciona a diversidade de produção da terra, passa a planejar o plantio de acordo com as espécies que contribuem entre si para o melhoramento e hidrificação do solo e entre elas mesmas. Aqui no Distrito Federal, temos uma estação muito marcada no cerrado, que é o finalzinho da seca e início das chuvas. Mas eu não planto absolutamente nada fora de estação, não crio estufas, pois o foco é regenerar o solo e as águas. E é isso o que garante a diversidade”, explica Osmany ao destacar também a importância das trocas de alimentos entre as redes de agricultura familiar.
“Por conta das diferenças marcantes entre as regiões daqui, precisamos fazer trocas. Por exemplo, no meu terreno eu tenho dificuldade de produzir berinjela, há dois anos não tenho boas safras. Mas tenho muita facilidade de plantar cenoura, abobrinha, espécies exigentes que outros lugares não conseguem produzir. Já o pessoal que mora no Pipiripau, que fica em Planaltina, produz muito bem berinjela e então trocamos. O valor monetário dos produtos é indiferente para nós, não atuamos com base em valores de mercado. O mais importante para nós é garantir o plantio e as cestas diversificadas para quem vai comer”, complementa Osmany.
Biodiversidade local
A valorização das plantas nativas é outra característica dos Sistemas Agroflorestais (SAFs) localizados no Centro-Oeste, e que se relaciona diretamente ao respeito à sazonalidade característico da prática da agricultura familiar. “Essa estação de início das chuvas, por mais difícil que seja, também se caracteriza pela abundância. Eu costumo colher baru, pequi, caju do cerrado, bacupari, alguns itens que incluo nas cestas para entrega e que os consumidores adoram. Nas cestas de CSAs – Comunidades que Sustentam a Agricultura – que produzo, preciso garantir entre 12 e 15 itens diferentes, entre folhagens, temperos, frutas, legumes, ervas medicinais, entre outros. Tudo isso conseguimos garantir com os princípios da agrofloresta, sem insumos nocivos e fazendo circular as espécies nossas, nativas”, destaca o permacultor e agricultor.
Através de mutirões de trabalho, Osmany participou ativamente da implementação de alguns sistemas agroflorestais da região, inclusive o do Assentamento Canaã, onde moram 60 famílias agricultoras que ajudam a garantir que a comida de verdade chegue à mesa da população do DF. A agricultora Tânia Aguiar, moradora do Assentamento Canaã, é uma das protagonistas que participa dos mutirões de SAFs e, assim como Osmany, também comercializa através de feiras livres e de grupos de CSA. Para ela, a diversidade alimentar que a agrofloresta consegue oferecer é impressionante.
“Quando chegamos aqui, há cerca de cinco anos, essa terra era devastada pela monocultura do eucalipto. Aos poucos, conseguimos recuperar e hoje já colhemos caju, araçá, pequi, camapu. Itens característicos do cerrado que conseguimos enviar para as pessoas comerem com suas famílias”, afirma Tânia que, além de junto com outras 25 agricultoras, compõe a Associação de Mulheres do Campo, do Assentamento Canaã e o grupo CSA Paulo Freire, responsável pelo abastecimento alimentar de aproximadamente 200 famílias. Para se ter uma ideia da importância da agricultura familiar na região, somente no Assentamento Canaã, são oito grupos de CSAs fortalecendo a circulação de alimentos saudáveis.
Desafios geográficos e climáticos
Para o consultor da Aliança Global para o Futuro da Alimentação (Global Alliance for the Future of Food) e chef de cozinha, Matheus Zanella, “a terra em Brasília sempre foi um assunto sensível. Primeiro porque se trata de uma cidade no meio dos platôs do cerrados, onde tem terras retas, altas. Isso ajudou a intensificar a ação de um modelo de agricultura excludente, voltado ao agronegócio em larga escala, à criação de gado e plantio de soja. Nos anos 1980, percebemos o estabelecimento desses assentamentos de agricultura familiar, nos arredores das cidades-satélites e na região do entorno do Distrito Federal. Foram pioneiros no sentido de apresentar e estruturar alternativas inovadoras, às vezes com apoio de políticas públicas, mas muitas vezes autonomamente”, explica o consultor, que compõe o Comitê Gestor da “Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia”.
“O que essas agricultoras e esses agricultores fazem em termos de abastecimento alimentar diante dos desafios geográficos e climáticos é incrível.”
Matheus Zanella
Para Matheus, a força da agricultura familiar em uma região de fortes contrastes socioeconômicos como o Distrito Federal aponta caminhos significativos para a construção de sistemas agroalimentares justos, saudáveis e sustentáveis. “O que essas agricultoras e esses agricultores fazem em termos de abastecimento alimentar diante dos desafios geográficos e climáticos é incrível. Brasília tem um clima tropical marcado, em boa parte do ano não chove. Nessa época, sem irrigação, não se produz nada. E com a implementação dos SAFs, eles conseguem ter produções variadas, sistemas consorciados, o ano inteiro. Vale à pena destacar que tem uma taxa de urbanização de mais de 95%. São esses 5% de população rural, essencialmente agricultores familiares, que garantem a comida de verdade na mesa de toda a população dessas regiões limítrofes e que fazem com que Brasília seja um bom exemplo do que se conseguiria fazer dentro de outros centros urbanos brasileiros”, aponta Matheus.
Mapeamento do abastecimento alimentar
O mapeamento de experiências de abastecimento alimentar conduzido pela “Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia” busca não apenas a identificação de experiências como a dos Sistemas Agroflorestais, como também dar visibilidade a essas iniciativas e apontar caminhos à transformação dos sistemas agroalimentares e incidir sobre a formulação e execução de políticas públicas.
Ação Coletiva Comida de Verdade” intensifica a comunicação e o convite para que as/os protagonistas das diferentes experiências que vêm sendo iniciadas ou intensificadas com vistas ao abastecimento alimentar da população brasileira com alimento saudável e livre de venenos participem desse mapeamento
Por isso, a equipe da “Ação Coletiva Comida de Verdade” intensifica a comunicação e o convite para que as/os protagonistas das diferentes experiências que vêm sendo iniciadas ou intensificadas com vistas ao abastecimento alimentar da população brasileira com alimento saudável e livre de venenos participem desse mapeamento. Para participar, basta preencher o formulário disponível na plataforma Agroecologia em Rede (AeR), um sistema integrado de informações sobre iniciativas de agroecologia e que reúne mais de 1.600 experiências de base popular e agroecológica.
Para dar conta da imensidão do mapeamento, cada região do Brasil conta com um/a articulador/a, cuja missão é mobilizar e incentivar as/os agricultoras/es, consumidores, membros de comunidades tradicionais, associações de bairro, conselhos alimentares, organizações da sociedade civil e movimentos sociais a contribuírem com o cadastramento das experiências. Potencializando assim a diversidade de vozes, trajetórias e experiências presente em cada canto desse país.
Os dados coletados pelo mapeamento nos diferentes territórios deverão contribuir para a observação e compreensão das estratégias adotadas pelos diferentes atores que compõem o sistema agroalimentar, servindo de inspiração para outras experiências e fornecendo subsídios para que o Estado e diferentes organizações possam atuar de forma mais efetiva, seja no contexto da pandemia ou para lidar futuramente com novas situações similares. Além disso, deverão orientar estudos acadêmicos voltados à reflexão sobre os processos de transição para sistemas agroalimentares enraizados nos territórios e a serviço das necessidades da população e caminhos para o seu fortalecimento.