18/09/2024 - Blog Manifestos
Todo mundo quer ficar bem na foto do combate à fome, mesmo aqueles que contribuem para sua existência!
As disputas políticas, sociais e econômicas pelo Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) são uma realidade no Brasil e no mundo. A alimentação e a nutrição têm sido cada vez mais um espaço privilegiado do modo de produção e consumo de alimentos para reprodução do sistema capitalista contemporâneo. Isso se dá por meio da destruição em massa da natureza, portanto, da vida e da saúde humana, e da transformação do alimento em mercadoria. Desde a estrutura fundiária brasileira, passando por um sistema hegemônico de produção baseado no uso e na contaminação indiscriminados da terra e das águas, na perda da biodiversidade brasileira, num modelo de distribuição que gera um enorme desperdício de alimentos, até a intensificação do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. O que a humanidade tem produzido é a sinergia destrutiva entre as pandemias de desnutrição, fome, obesidade e crise ambiental, reconhecida como sindemia global. A sindemia global é fruto do sistema agroalimentar hegemônico e pautada por interesses comerciais em detrimento dos interesses sociais e de sustentabilidade da vida humana e não humana no planeta.
Conscientes ética e politicamente, e amparados por evidências científicas livres de conflitos de interesse, recebemos com espanto e indignação a notícia da assinatura, no dia 21 de agosto de 2024, do termo de cooperação entre a empresa multinacional Coca-Cola – caracterizada na divulgação institucional do governo brasileiro como “Grupo Coca-Cola” – e o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) – órgão do Estado brasileiro responsável pelas políticas nacionais de desenvolvimento social, segurança alimentar e nutricional, assistência social, renda e cidadania, para investimentos em prol do combate à insegurança alimentar e nutricional. De acordo com nota divulgada pelo governo, o objetivo dessa “parceria” entre a Coca-Cola e o MDS é o fortalecimento de pequenos negócios no Brasil, visando construir novas cozinhas para ensinar e capacitar microempreendedores a partir do Programa Acredita no Primeiro Passo.
Não é a primeira vez que o contraditório está em evidência, e a Coca-Cola diz ter o papel de “refrescar o mundo e fazer a diferença”, neste caso com a chancela do Estado brasileiro. Com a aparência de uma parceria que “é mais um esforço para levar segurança alimentar a quem precisa, com o intuito de chegar a diversas partes do Brasil com nossas políticas” (palavras do Ministro Wellington Dias, na ocasião), a essência deste acordo denota mais uma violação do DHAA enquanto um princípio norteador da Política Nacional da Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), bem como o descaminho irresponsável do Estado brasileiro da sua obrigatoriedade em proteger, promover, garantir e prover a efetivação desse direito, por meio das políticas públicas vigentes no país. A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) – Lei nº 11.346, de 15 setembro de 2006 – a Emenda Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010, e todo o arcabouço legal do DHAA no Brasil explicitam o papel do Estado brasileiro e da participação social na construção da PNSAN.
As políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (SAN) não precisam de estratégias disfarçadas de responsabilidade social e de marketing como incentivo ao empreendedorismo para quem tem fome. Perguntas relevantes a serem feitas neste momento: este é o caminho que a sociedade brasileira necessita? E esta é a melhor estratégia? O que queremos é trabalho justo, moradia digna, educação e alimentação de qualidade e em quantidade suficiente, saúde, cultura e lazer. Queremos os nossos direitos sociais efetivados na vida cotidiana e nas mais diversas partes do Brasil, pois sabemos que cada um deles foi garantido constitucionalmente por meio de muitas lutas ao longo da história do nosso país. Sabemos que ações como estas desvelam a política neoliberal que os governos brasileiros têm adotado. E mesmo em momentos de crise, nós, participantes ativos da sociedade brasileira, não deixaremos retroceder o que já conseguimos avançar em termos de direitos sociais e políticas públicas no Brasil, no campo da SAN e do DHAA.
Ações governamentais, como esse termo de cooperação, fragilizam a construção permanente de alguma possibilidade de soberania alimentar, enquanto um princípio da SAN. O ‘Marco Estratégico Global para a SAN’ (2014) explicita a importância da integração dos princípios dos direitos humanos para a garantia da SAN nos países, são eles: participação, accountability (responsabilização), não discriminação, transparência, dignidade humana, a delegação de poder e o Estado de direito no plano local, regional, nacional, ou internacional.
É de conhecimento público o fato de que o consumo de bebidas adoçadas, como os refrigerantes, está entre as principais causas associadas ao risco de adoecimento por doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), especialmente pela presença de açúcar em quantidades excessivas. A explosão da prevalência da obesidade no Brasil e no mundo se deve, em grande medida, pela presença crescente de produtos ultraprocessados na dieta, como estes tipos de bebidas. Estratégias de apagamento dos efeitos negativos de produtos sobre a saúde das pessoas consumidoras, por meio da construção de uma imagem de responsabilidade social são comuns em grupos econômicos poderosos, como as multinacionais, especialmente quando seus mercados são ameaçados. O volume de vendas de refrigerantes no Brasil tem experimentado, na última década, variações negativas, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (ABIR). A ação deletéria das indústrias de refrigerantes não se restringe aos prejuízos diretos sobre a saúde da pessoa consumidora: a exploração devastadora de recursos hídricos, com ampliação do controle de aquíferos em diversos países, e a produção massiva de embalagens plásticas que contribuem para o acúmulo de resíduos, alcançando rios e oceanos são dois aspectos centrais para a sustentação de seu modelo de negócio, que é destrutivo para o planeta. Também é conhecida a influência da indústria sobre a ciência, mediante o financiamento de pesquisas visando combater as evidências sobre a relação entre o consumo de refrigerantes e problemas de saúde. Exemplo disso, em 2012, foi a campanha da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) “Emagrece, Brasil” que contou com o patrocínio da Coca-Cola, em uma atitude que seria irônica, se não fosse trágica.
Ações desta natureza nada mais são que uma manobra de publicidade, especialmente quando se sabe que a Coca-cola recebeu incentivos tributários, apenas em nove anos, da ordem de R$ 4,3 bilhões em impostos. O “investimento” que esta empresa e outras em iniciativas semelhantes é migalha perto do que usufruem do orçamento público e prejuízos que causam à sociedade e à natureza.
O estabelecimento da parceria entre a empresa de bebidas e o MDS não apenas é uma afronta à sociedade brasileira, como também compromete a legitimidade de ações com aval estatal, dado o claro conflito de interesse que representa. As políticas governamentais devem cumprir o seu papel de respeitar, proteger, prover e promover o direito de todas as pessoas à alimentação adequada e saudável, devem proteger o bem comum e o interesse público. A comunidade acadêmica, organizações sociais e pesquisadores que subscrevem esta nota repudiam o estabelecimento deste termo de cooperação, que infelizmente não é o primeiro com diferentes grupos empresariais e multinacionais que causam danos à saúde e à alimentação para a população brasileira.
Coletivos que subscrevem esta nota:
- Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)
- Grupo Temático 1 – Direito Humano à Alimentação Adequada (GT1-DHAA da Rede PENSSAN)
- Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
- Observatório Brasileiro de Conflitos de Interesse em Alimentação e Nutrição (ObservaCoI)
- Observatório de Economia Política da Saúde – ECOPOL Saúde (FSP-USP)
- Comissão do DHAA da OAB/RJ (Presidente – Leonardo Felipe de Oliveira Ribas)
- Fórum Estadual de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional de Pernambuco (FESSAN-PE)
- Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade de São Paulo (ObSANPA)