Sua comida tem marca ou identidade?

[versão expandida do texto publicado na Folha de São Paulo em 28/02/2024]

Sobre alimentação, não há uma semana que passe sem que surjam declarações de quem defende o lucro do seu próprio quadrado, gerando manifestações e até desmentidos posteriores.

É lógico! Não há nada mais essencial para a vida humana digna do que a alimentação, algo que gera muitos lucros, mas que, por outro lado, demonstra, de maneira tão evidente, os descaminhos que percorremos no Brasil e no mundo.

Já sabemos, estudo nacional realizado em 2021/2022  (II VIGISAN) mostrou que, no Brasil, 33 milhões estavam em situação de fome e que mais da metade da nossa população tinha algum grau de insegurança alimentar, isto é, não tinha certeza de que conseguiria se alimentar, alterava a quantidade e/ou qualidade das refeições. Mais pessoas que a população de muitos países.

Afinal qual o problema de profetizar que sairemos da cozinha em 10 anos? (“Em dez anos, ninguém vai mais cozinhar, diz presidente do iFood“, 17/02/2024)

Primeiro, quem sairá da cozinha? Quem olha o Brasil de cima não reconhece nossas desigualdades, não apenas econômicas, mas de gênero. Quem cuida da comida são principalmente mulheres, seja em suas casas ou no trabalho. Então, não cozinhar poderia ser considerado um ato de libertação.

Errado. Por trás de toda comida desproporcionalmente barata há exploração, seja de quem planta, de quem vende, de quem cozinha ou de quem entrega. Exploração significa degradação das condições de vida, de trabalho e ambientais.

Precisamos, sem dúvida, encontrar coletivamente caminhos que não reforcem uma desigualdade de gênero já insuportável em relação aos cuidados da alimentação. Mulheres, principalmente em domicílios de baixa renda, organizam seu cotidiano em torno dos cuidados domésticos, das pessoas que vivem com ela e da alimentação da família. Aquelas que trabalham fora de casa enfrentam desafios diários para conciliar o trabalho, as compras e a preparação das refeições, muitas vezes cozinhando à noite ou de madrugada para deixar a comida pronta para o dia seguinte.

O que podemos fazer para mudar essa realidade? Precisamos investir fortemente na mudança de valores para que este cuidado seja compartilhado por todas as pessoas, desde muito cedo. São conhecimentos e habilidades que devem ser abordados no sistema educacional. Ampliar o número de cozinhas nas comunidades, ampliar a rede de varejo de alimentos frescos para que todas as pessoas possam “fazer sua feira” no caminho de casa. A universalização da educação infantil e fundamental em tempo integral, com oferta de alimentação saudável, também é uma medida essencial. Estas e várias outras medidas são possíveis e necessárias, é preciso que sejam consideradas prioridades públicas para ganharem escala.

Mas cozinhar leva tempo, é caro, é monótono e um aplicativo oferece páginas e páginas de pratos que nos levam para todos os lugares do mundo, do fast food ao super natureba, portanto, dá para ter comida saudável pelo aplicativo.

Errado. Na maioria das vezes, não. A escolha virtual, preponderantemente baseada em apelo visual e preço, tende a resultar em pratos com excesso de calorias. A aparente variedade infinita é enganosa, pois tendemos, no dia a dia, a optar pelo conhecido e seguro. Ampliar o repertório e valorizar memórias e culturas alimentares é um ato pessoal e personalizado. A experiência completa se dá quando você tem contato direto com a comida, seja preparando nós mesmos ou alguém querido preparando para nós. Esta experiência intuitiva é comprovada pela ciência: pessoas que preparam sua própria comida têm maior grau de autonomia e saúde.

E o desafio da praticidade? Importante mesmo nestes tempos tão velozes. Preste atenção como recebemos constantemente mensagens sobre nossa incapacidade de cuidar de nós mesmos, que não temos tempo e que não sabemos como fazer. O apelo da terceirização que resolverá nossas vidas. Também está provado pela ciência e pela experiência pessoal que, a partir de certo ponto, a prática se incorpora à rotina, permitindo o planejamento e execução de forma eficiente. A prática economiza tempo e estimula a procurar novas experiências, neste caso, novos sabores e preparações. A recompensa de você cuidar de você mesmo e de quem você decidir cuidar. Tem algo mais libertador do que isso?

E tem mais, a crescente e profetizada total dependência dos aplicativos de entrega ameaça as economias locais. Para ser ágil, a tendência é concentrar. O que era um restaurante que você passava na porta virou um box de uma cozinha industrial. Sim, as “dark kitchens”, que invadiram bairros, mudaram dinâmicas; nada é preparado para você, precisa ter escala.

Para transformar essa realidade, precisamos repensar nossas escolhas e reorganizar nossas práticas alimentares. Podemos recuperar nossas memórias e criar novas. Podemos tornar todo o cuidado em torno da nossa comida em um ato de convívio e compartilhamento cotidiano. Para além disso, temos ótimos apoios como os Guias Alimentares publicados pelo Ministério da Saúde em 2014 (dirigido para a população em geral) e 2019 (dirigido para crianças menores de 2 anos), que valorizam a culinária e a comida de verdade e têm uma abordagem muito prática.

Esperamos que, em dez anos, olhemos para hoje com o orgulho de termos superado as cortinas de fumaça sobre o que é bom, possível e saudável. Que nossa alimentação seja a expressão de uma sociedade mais justa, equitativa e sustentável.

Cozinhar não é apenas uma atividade, é uma prática emancipatória, um ato revolucionário.

 

Assinado pelo Núcleo Gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável

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