A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável alerta para o risco que o novo produto da Nestlé, Mucilon Meu Primeiro Lanchinho, representa para a alimentação adequada e saudável de bebês e crianças. O produto e as estratégias para a sua promoção contrariam o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, do Ministério da Saúde.

NOVOS PRODUTOS, VELHAS (E MÁS) PRÁTICAS

Gigante no setor de alimentos voltados para o público infantil, a Nestlé acaba de introduzir no mercado brasileiro o “Mucilon Meu Primeiro Lanchinho”, um produto à base de milho que tem muitas características em comum com os produtos ultraprocessados. Trata-se de um produto que integra a linha Mucilon, que até então contava com ultraprocessados à base de cereais destinados à preparação de mingaus e papas. Ele está disponível em três sabores e é indicado pela empresa para bebês a partir de oito meses de idade. Esse lançamento é mais uma investida da empresa que contraria as diretrizes preconizadas pelo Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos (Guia da Criança)1. Produtos desse tipo, assim como as estratégias de comunicação mercadológica adotadas para sua promoção, representam uma ameaça ao consumo de alimentos in natura ou minimamente processados e podem comprometer a formação de hábitos alimentares saudáveis e a saúde da criança.

O produto e as estratégias para a sua promoção contrariam o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos

Em um de seus princípios, o Guia da Criança afirma que “nos primeiros anos de vida, a variedade e a forma com que os alimentos são oferecidos influenciam a formação do paladar e a relação da criança com a alimentação. A criança que come alimentos saudáveis e adequados quando pequena tem mais chances de se tornar uma pessoa adulta consciente e autônoma para fazer boas escolhas alimentares” (pág. 17). O sabor, a textura e o aroma do novo produto da Nestlé são características sensoriais que não se assemelham às de alimentos in natura ou minimamente processados. Por isso, o consumo desse tipo de alimento não contribui para o papel que a alimentação pode desempenhar no estímulo ao pleno desenvolvimento infantil.

Nas embalagens, na campanha publicitária e em suas mídias oficiais, a Nestlé apresenta seu novo produto como um alimento “desenvolvido especialmente para o seu bebê” e “adequado para lactentes” por suas características singulares: “dissolve fácil na boca” diz uma das mensagens, “tem textura e sabor suaves” afirma outra, além de “formato especial para as mãozinhas do seu filho”. A textura chamada de “suave” pela empresa é consequência do processo tecnológico de extrusão, utilizado na fabricação do “Meu Primeiro Lanchinho” e também responsável pela textura de produtos ultraprocessados como Fandangos®, Cheetos® e Fofura®. É esse processo que permite que o alimento, sólido, se “dissolva” na boca, uma característica que não é encontrada em alimentos in natura ou minimamente processados ou nas preparações culinárias elaboradas a partir deles. O Guia da Criança afirma que “a hora de comida é um momento de estímulo ao desenvolvimento” (pág. 107) e recomenda que “uma diversidade de cores, sabores, texturas e cheiros deve ser apresentada à criança” (pág. 93); afirma também que a textura mais espessa (firme) dos alimentos é “parte essencial na evolução da mastigação e no desenvolvimento como um todo” (pág. 94).

Em peças de promoção do produto, é fortemente estimulada sua oferta juntamente com sucos de frutas. Segundo o Guia da Criança, a oferta de sucos, mesmo que naturais e sem adição de açúcar ou outros ingredientes, não deve ser encorajada. A prática de oferecer suco “acaba habituando a criança a matar a sede com bebidas açucaradas ou saborizadas e aumenta a chance de a criança apresentar excesso de peso, cárie e diabetes” (pág. 100). A água e o leite materno são os alimentos líquidos mais adequados para crianças de 6 meses a 2 anos de idade e as frutas devem ser oferecidas como lanche (ou merenda) amassadas ou em pedaços,  a depender da idade da criança.

Outro aspecto que merece comentário é o preço elevado do produto: R$3,89* por embalagem com 35g. O quilo do produto custa, portanto, aproximadamente R$111,10. Seu principal ingrediente, a farinha de milho, custa cerca de R$6,00* por quilo. Os alimentos condizentes com as recomendações do Guia da Criança são mais acessíveis que este produto.

Estratégias de comunicação mercadológica utilizadas pela empresa

Chama atenção o conjunto de estratégias de comunicação mercadológica que tem o objetivo de, por diferentes mecanismos, persuadir o consumidor a adquirir esse produto. Foram identificadas no produto, em seu rótulo e nas peças para sua divulgação e propaganda:

• Apelo à saúde: técnicas, alegações e mensagens como “lanchinho nutritivo e saudável”, “assado”, “vitaminas e minerais essenciais”, “farinha de milho integral e vegetais desidratados”.

• Apelo emocional: produto em formato de coração (que, na propaganda eletrônica, pulsa, aludindo a um coração batendo); destaque às mensagens “desenvolvido para lactentes” e “formato especial para a mãozinha do seu filho”, “prático para todos os momentos” e “fácil de levar”; uso da imagem de bebês nas peças de publicidade; clima de empatia com mães e cuidadores de bebês em relação a situações cotidianas (bebê ter fome em horário diferente do da refeição; bebê sentir fome na rua) e valorização da importância da rede de apoio (neste caso, a empresa se coloca nesse lugar ao propagandear um produto “prático”).

• Estímulo aos sentidos:  destaque à mensagem “dissolve fácil na boca”.

• Participação de personagens: presença de personagem com apelo infantil que compõe a linha de produtos.
• Propaganda sob propaganda: divulgação e indicação de espaços virtuais para mais informações sobre o produto e sobre outros produtos da linha da qual ele faz parte.

• Apelo à sustentabilidade: mensagens sobre reciclagem da embalagem (“Embalagem pode ser descartada em lixo reciclável”, uso de símbolo de reciclagem e de coleta seletiva no rótulo); convite para repensar atitudes com divulgação de site com as ações da empresa para a preservação do meio ambiente (“vamos repensar nossas atitudes? Você sabia que esta embalagem pode ser reciclada?”).

Esse conjunto de estratégias de comunicação mercadológica caracteriza propaganda abusiva, uma vez que leva o consumidor a adquirir um produto menos saudável do que a empresa quer fazer crer, induzindo a hábitos alimentares não saudáveis2.

Captura corporativa do nutricionismo

Esse produto e as estratégias de comunicação mercadológica envolvidas em seu lançamento são um exemplo emblemático do que Gyorgy Scrinis3 chama de ‘captura corporativa do nutricionismo’. O nutricionismo é  um paradigma  caracterizado pela “ênfase redutiva na composição nutricional dos alimentos como forma de identificar o quanto eles são saudáveis e por uma interpretação redutora do papel de tais nutrientes na saúde corporal” (pág. 25). Uma de suas principais características é que “se desconsideram as preocupações com a qualidade de produção e do processamento do alimento e de seus ingredientes” (pág. 25). Outra característica fundamental é uma abordagem descontextualizada dos nutrientes, isto é, eles são “estudados e interpretados fora do contexto dos alimentos e dos padrões dietéticos em que são consumidos” (pág. 66). As indústrias de alimentos lançam mão deste quadro conceitual quando constroem uma “fachada nutricional” positiva para seus produtos, enaltecendo as características de alguns nutrientes específicos; e não informam para o consumidor nem os aspectos nutricionais que podem ser negativos no produto nem aqueles relacionados ao processamento, que podem influenciar sua qualidade.

No caso analisado aqui, entre as estratégias de comunicação mercadológica já mencionadas, uma das alegações destacadas na parte frontal do rótulo do produto e nas estratégias de sua divulgação é aquela referente ao uso de farinha de milho integral. O termo “integral” remete à ideia de maior presença de fibras, elemento importante para uma dieta saudável, informação que já faz parte do repertório dos consumidores. Entretanto, na tabela de informação nutricional verifica-se que não há presença de fibras. Outra alegação que merece ser comentada é aquela que afirma que o alimento é fonte de vitaminas e minerais essenciais (ferro, zinco e vitamina B1). O principal ingrediente deste produto (farinha de milho, que representa 98% de sua composição, segundo informação no rótulo) não é uma fonte natural desses nutrientes. Eles são, portanto, adicionados ao produto em seu processamento industrial. A alegação sugere ao público que esses nutrientes terão desempenho similar ao de quando estão presentes em alimentos in natura ou minimamente processados. Entretanto, muitas vezes isso não acontece, pois vários aspectos ligados ao metabolismo dos nutrientes (por exemplo, sua biodisponibilidade) dependerá da matriz alimentar em que eles se encontram.

Por outro lado, o consumidor não é informado de que o produto tem alta densidade energética, com 3,7 quilocalorias por grama do produto. Este valor é muito superior, por exemplo, ao encontrado na combinação de arroz com feijão, cuja densidade energética é da ordem de 1,14, e supera valores médios de densidade energética observados para alimentos ultraprocessados consumidos no Brasil e em diversos países (que ficam mais próximos de 3,0)5,6. Isso é motivo de preocupação, uma vez que há evidências de que o consumo de alimentos com alta densidade energética está associado ao maior acúmulo de gordura corporal em crianças7.

Não se deixe enganar: esse produto, além de caro, não contribui para uma alimentação saudável nem para a formação de bons hábitos alimentares porque: não é um tipo de alimento recomendado para esta faixa etária, tem características sensoriais e nutricionais similares às de alimentos ultraprocessados e é alvo de práticas mercadológicas que ludibriam o consumidor. A melhor alimentação para a criança a partir dos seis meses de vida são o leite materno, os alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias caseiras que usem esses alimentos, seja em refeições, seja em lanches ou na alimentação fora de casa.

* Pesquisa de mercado realizada em 29 de agosto de 2021.

Referências
1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. departamento de Promoção da Saúde. Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos. – Brasília: Ministério da Saúde, 2019, 265p.: il.
2. Brasil. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor.
3. Scrinis G. Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional/ Gyorgy  Scrinis; tradução de Juliana Leite Arantes. São Paulo: Elefante, 2021. 464 p.
4. Universidade de São Paulo. Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental/BRASILFOODS (1998). Tabela Brasileira de Composição de Alimentos-USP. Versão 5.0. Disponível em: http://www.fcf.usp.br/tabela. Acesso em: 31.08.2021.
5. Monteiro C, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. Increasing consumption of ultra-processed foods and likely impact on human health: evidence from Brazil. Public Health Nutrition. 2011, 14(1):5-13.
6. Monteiro C, Cannon G, Lawrence M, Costa Louzada ML , Pereira Machado P. 2019. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome, FAO.
7. Johnson L, Mander AP, Jones LR, Emmett PM, Jebb SA. Energy-dense, low-fiber, high-fat dietary pattern is associated with increased fatness in childhood. Am J Clin Nutr. 2008 Apr;87(4):846-54. doi: 10.1093/ajcn/87.4.846. PMID: 18400706.

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