28/02/2020 - Notícias
por Sophia Rosa Benedito, integrante da Aliança RJ, nutricionista, especialista em Saúde da Família pela ENSP/FIOCRUZ RJ
Contextualizando a questão hídrica no Rio de Janeiro
O Estado do Rio de Janeiro está dividido em nove Regiões Hidrográficas (RH), com o intuito de facilitar a gestão e planejamento de recursos hídricos. De acordo com a resolução CERHI-RJ Nº 107/13, são elas: RH I: Região Hidrográfica Baía da Ilha Grande; RH II: Região Hidrográfica Guandu; RH III: Região Hidrográfica Médio Paraíba do Sul; RH IV: Região Hidrográfica Piabanha; RH V: Região Hidrográfica Baía de Guanabara; RH VI: Região Hidrográfica Lagos São João; RH VII: Região Hidrográfica Rio Dois Rios; RH VIII: Região Hidrográfica Macaé e das Ostras; e RH IX: Região Hidrográfica Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana. O município do Rio de Janeiro é dividido parcialmente entre as regiões do Guandu e da Baía de Guanabara (RIO DE JANEIRO, 2013).
Inaugurada em 1975, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) é uma concessionária de serviço público e pessoa jurídica de direito privado, resultante da fusão da Empresa de Águas do Estado da Guanabara (CEDAG), da Empresa de Saneamento da Guanabara (ESAG) e da Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro (SANERJ). Como vocação, realiza a captação, tratamento, adução e distribuição das redes de águas, além da coleta, transporte, tratamento e destino final dos esgotos gerados dos municípios conveniados do Estado do Rio de Janeiro.
No que tange ao tratamento de água para o consumo, a CEDAE possui duas estações de tratamento (ETA): a do Guandu e a do Laranjal. A empresa é responsável, atualmente, por 85% do abastecimento de água do Grande Rio (municípios do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Nova Iguaçú, Belford Roxo, São João do Meriti, Mesquita, Nilópolis, Japeri, Queimados, Paracambi, Seropédica e Itaguaí) e por atender cerca de 9 milhões de pessoas (COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTOS, 2020b).
Inaugurada em 1955, atualmente a ETA Guandu passa por um processo de sucateamento. A maior estação de tratamento de água do mundo, de acordo com Guiness Book, apresenta a mesma estrutura dos anos 1960. De acordo com material elaborado recentemente, a CEDAE informa que ao captar água dos rios Queimados, Poços e Ipiranga, a ETA recebe água altamente poluída, evidenciando falta de preservação das mananciais (COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTOS, 2020a).
O estopim de uma crise anunciada
Na primeira semana de janeiro de 2020, milhões de cariocas e fluminenses passaram a perceber alterações de sabor, odor, turbidez e coloração na água, que até então era própria para o consumo. 86 bairros do município do Rio de Janeiro e seis municípios da baixada Fluminense souberam de fontes oficiais da CEDAE, no dia 7 de janeiro, sobre a alteração na qualidade de água, caracterizada pela presença de geosmina.
A geosmina é um álcool terpeno de ocorrência natural encontrado em beterrabas, vinhos, peixes e na água. Produzida no solo por bactérias filamentosas (Actinomycetos) e em ambientes aquáticos por algas verdes-azuladas (cianobactérias), essa substância está associada ao cheiro de terra molhada, mas também ao odor semelhante a mofo e sabor terroso, muitas vezes desagradável, em alimentos e na água (CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA -TERCEIRA REGIÃO, 2020).
Apesar de não haver comprovação de que a substância possa ser tóxica à saúde humana, a geosmina passou a ser responsabilizada, em matérias jornalísticas e redes sociais, por dores de cabeça e alterações gastrointestinais (CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA -TERCEIRA REGIÃO, 2020).
Para pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a presença elevada da substância na água distribuída é um fator de preocupação. Isso porque indica a presença de cianobactérias em grande quantidade na água captada para o tratamento. Esses microrganismos podem produzir algumas toxinas muito potentes (cianotoxinas), que precisam ser removidas durante o tratamento da água para não comprometer a saúde da população. Há limites máximos aceitáveis dessas toxinas para que a água possa ser considerada potável. Água essa que, de acordo com os dados apresentados pela empresa, se mantém dentro dos padrões aceitáveis (FONSECA, et al, 2020).
Outro ponto que chama atenção é que a presença de geosmina ou qualquer outro composto produzido por cianobactérias não promove a mudança de cor ou turbidez na água. Essas alterações podem ser causadas pela presença de outras substâncias e/ou material particulado em suspensão na água, muitas vezes decorrente da intermitência da água na rede de distribuição. Há também limites máximos aceitáveis para esses dois parâmetros (cor e turbidez) para que a água possa ser considerada potável (FONSECA, et al, 2020).
Já no dia três de fevereiro, foi detectada também, em análise sistemática da qualidade da água, a presença de detergente (surfactante), com provável origem industrial. O evento ocasionou a abertura das comportas e a pausa no abastecimento, ações consequentes do acionamento parcial dos procedimentos descritos no Plano de Contingência da CEDAE (FIOCRUZ, 2020).
Para a Câmara Técnica de Meio Ambiente do Conselho Regional de Química- Terceira Região (2020), tal cenário pode ter sido apenas um pequeno reflexo do desmonte das políticas de recursos hídricos. E pesquisadores da Fiocruz completam que tal situação faz parte de um processo histórico de vulnerabilidade das políticas públicas de saneamento e esgotamento sanitário. Retomando crises similares ocorridas em 2001 e 2004, surgiram como questões a determinação sobre os critérios elegidos pela gestão da CEDAE no uso do Plano de Contingência, priorização da qualidade da água, e a influência dos atravessamentos políticos e econômicos na arena.
Frente a este cenário, a população é a maior prejudicada. A rejeição à água com cor, sabor, odor incomuns, e a desconfiança sobre os efeitos das alterações de qualidade da água na saúde, resultaram em uma comoção social e busca pelo uso de águas com condições aparentemente melhores para o consumo: a água mineral, de bicas de cachoeiras, água fervida, entre outras. A água passou a fazer parte dos itens essenciais no orçamento das famílias, onerando ainda mais o acesso a um direito humano, como o da água. Preços abusivos começaram a ser praticados, apesar da maior fiscalização do PROCON; limitação da possibilidade de compra em supermercados pela grande demanda, bem como o racionamento do uso e consumo de água pela população.
O Boletim Epidemiológico da Vigilância em Saúde/MS (2020) apontou uma linha do tempo referente às ações da saúde para enfrentar este contexto. Pesquisadores de instituições públicas, do Ministério Público, e dos setores de Vigilância em saúde foram mobilizados para produzir materiais técnicos e acompanhar de perto a análise da qualidade da água distribuída. Como recomendação, o Ministério da Saúde elaborou um plano de ações necessárias para continuidade do controle (água) e vigilância (saúde) no referido contexto.
Questões políticas e o gosto amargo da privatização da CEDAE
Há tempos, o tema da privatização da concessionária de tratamento de água e esgoto está na mesa. A concessão da CEDAE ao setor privado surge como condicionante para que o Rio de Janeiro integrasse o Regime de Recuperação Fiscal proposto em 2017 pela União, frente a uma difícil crise financeira vivenciada no estado.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ficou responsável por construir a modelagem da venda, sugerida em quatro blocos territoriais. Pela previsão, cada bloco poderá ter um concessionário privado diferente. A proposta também prevê que cada zoneamento irá conter áreas e/ou municípios de acordo com as especificidades e à demanda pelos serviços de saneamento básico de cada um.
A justificativa para a venda da concessionária é o retorno financeiro para os cofres públicos, com a promessa de que os recursos serão utilizados para a ampliação do acesso ao tratamento de água e esgotamento sanitário para a população.
A convergência do maior interesse de privatização da CEDAE com o caos da crise hídrica no município do Rio e Baixada Fluminense no início de 2020 tem dividido opiniões, e sugerido relações. Análises e artigos de opinião tem associado a crise da água com a desvalorização das ações da CEDAE bem como, o fortalecimento de uma opinião que justifique intencionalmente a venda da concessionária pela crise hídrica. Será uma ação proposital?
Que fazer?
O direito humano à água é um direito de todos e todas. O exercício desse direito pode variar em função de diversas condições, como a disponibilidade para que o abastecimento de água a cada pessoa seja permanente e suficiente para os usos pessoais e domésticos.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a água deve ser de boa qualidade e salubre e não deve conter microrganismos, substâncias químicas ou radioativas que ameacem a saúde humana. Além disso, deve haver acessibilidade física e econômica à água, independente da condição financeira das pessoas.
Apesar da agudização da questão da água no Rio de Janeiro no início deste ano, é fundamental ressaltar que grande parte da população carioca e fluminense não possui água e esgotamento tratado cotidianamente. As desigualdades sociais e raciais são também identificadas na ausência da garantia dos direitos ao saneamento básico e saúde, sobretudo nos territórios de favela.
Frente à complexidade de questões que emergem da crise hídrica na atual conjuntura, e à possibilidade de construção do eixo “Garantir a água como direito humano e bem comum”, faz-se necessário mapear iniciativas já existentes e traçar um plano de ação para que a Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável possa ser mais um sujeito coletivo implicado na agenda pela garantia da qualidade da água, de sua afirmação como direito humano e não como mercadoria, e com a direção de defesa da saúde, da preservação do meio ambiente e do saneamento básico como elementos essenciais para a garantia de uma vida digna e justa.
Iniciativas identificadas:
- Abaixo-assinado: Queremos água limpa nas torneiras do Rio de Janeiro – CEDAE e Witzel, tomem providências!
- Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS – na Universidade de Brasília (UnB).
https://ondasbrasil.org/quem-somos/sobre-o-ondas/
- Organização Não-Governamental “MEU RIO”
https://www.essacontanaoeminha.meurio.org.br/
Referências:
CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA -TERCEIRA REGIÃO. Análise da Câmara Técnica de Meio Ambiente acerca da Crise Hídrica Fluminense. Disponível em: http://ct.crq3.org.br/wp-content/uploads/2020/01/Nota-crise-h%C3%ADdrica-CTMA.pdf
COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTOS [a]. Apresentação da CEDAE na Audiência Pública da ALERJ. Disponível em: https://storage.googleapis.com/site-cedae/apresentacoes/ALERJ_CEDAE.pdf
COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTOS [b]. Livreto sobre a ETA Guandu. Disponível em: https://www.cedae.com.br/portals/0/livreto_guandu.pdf
RIO DE JANEIRO. SECRETARIA DE ESTADO DO MEIO AMBIENTE. Resolução CERHI nº 107 de 22 de maio de 2013, que aprova nova definição das regiões hidrográficas do estado do rio de janeiro e revoga a resolução cerhi n° 18 de 08 de novembro de 2006. Disponível em: http://arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/cerhi/ResCERHI_107_RHs_AprovCERHI_Aprov12jun13.pdf
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. A qualidade da Água do Sistema Guandu. Rio de Janeiro: Canal Saúde Oficial, 2020. (57 min.), color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=Rn4pVQ7b56c&feature=emb_logo>. Acesso em: 18 fev. 2020.
FONSECA, et al. Nota técnica da UFRJ sobre os problemas da qualidade da água que a população do rio de janeiro está vivenciando. Disponível em: https://ufrj.br/sites/default/files/img-noticia/2020/01/nota_tecnica_-_caso_cedae.pdf
BRASIL, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico nº 05, janeiro de 2020. Vol. 51. Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/fevereiro/05/Boletim-epidemiologico-SVS-05.pdf
1 Comment
byTelmi
Obrigada Sophia Rosa por dividir seu conhecimento com a população, apesar de não ser do Rio de Janeiro mando forçar para que com luta e conhecimento esse cenário melhore.