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O aumento da obesidade, do sobrepeso e dos casos de doenças degenerativas vem despertando crescente interesse da população pela qualidade dos alimentos ingeridos no dia-a-dia. Com isso, a rotulagem das embalagens de alimentos passou a ser, cada vez mais, um problema de saúde pública e de disputa política e econômica. Neste momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é palco de um acirrado debate entre representantes da indústria da alimentação e de entidades de defesa do consumidor e da área da saúde. O ponto central desse debate é a definição das novas regras de rotulagem de alimentos no país.

O Brasil possui hoje duas normas mais gerais da Anvisa, em vigor há mais de dez anos, que regulamentam a rotulagem de alimentos. Uma trata da rotulagem de modo geral, indicando como devem ser as declarações de origem, quantidade, ingredientes e denominação do produto. A outra norma trata da rotulagem nutricional, que inclui a tabela de nutrientes e informações nutricionais complementares que, normalmente, aparecem em letras minúsculas, quase nunca lidas. Essas duas normas definem a informação obrigatória que deve aparecer na embalagem dos alimentos.

Há ainda outras normas mais específicas como a que define como deve ser a rotulagem de alimentos que podem causar alergia alimentar. Ou ainda a que obriga embalagens de bebidas à base de frutas a declarar qual é o percentual de fruta utilizado. Além dessas normas da Anvisa, há um decreto do Ministério da Justiça que estabelece a rotulagem de transgênicos, atualmente objeto de disputa no Congresso Nacional.

Você sabe o que come?

A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, uma articulação de entidades e profissionais que atuam na área de segurança alimentar e nutricional, lançou uma campanha intitulada “Você tem o direito de saber o que come”, defendendo rótulos mais claros e restrição de propaganda enganosa, em especial aquelas destinadas ao público infantil. Na avaliação de Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que integra a Aliança, a atual regulamentação da rotulagem é deficiente e não atende a requisitos básicos para garantir uma alimentação saudável.

Para ela, a atual linguagem da rotulagem é muito técnica, de difícil compreensão e com problemas de visualização. “Se as pessoas conseguem enxergar já é uma vitória. Se conseguirem entender, então, nem se fala. As informações que aparecem nas tabelas de nutrientes são insuficientes para o consumidor conseguir tomar uma decisão, tanto por conta da linguagem quanto por lacunas de informações. Um exemplo disso é a informação sobre a quantidade de açúcar. Normalmente, aparece a informação sobre o percentual de carboidrato total, mas não sobre o de açúcar”, ilustra Ana Paula.

Duas propostas em debate

Entre 2014, a Anvisa iniciou um processo de debate sobre a revisão das normas de rotulagem nutricional no Brasil. Pesquisadores e representantes da sociedade civil foram convidados a participar desse processo para debater os problemas da rotulagem atual e possíveis soluções. No encerramento desta etapa, em 2016, a Anvisa convidou os participantes a enviarem propostas de novas normas para a rotulagem. O Idec, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), apresentou uma proposta, baseada na experiência do Chile, que é um modelo de rotulagem de advertência na parte frontal da embalagem sobre a presença de quantidades em excesso de alguns nutrientes associados a doenças crônicas.

“Estamos falando de açúcar, sódio, gordura total, gordura saturada, gordura trans e adoçantes. Defendemos esse tipo de advertência com base em critérios da Organização Panamericana da Saúde que definiu valores críticos dessas substâncias de acordo com o risco crítico de doenças crônicas”, explica a nutricionista. Países como Uruguai, Argentina e Peru, acrescenta, estão caminhando para adotar um modelo similar ao do Chile.

Há duas questões fundamentais envolvendo a rotulagem nutricional, assinala Ana Paula Bortoletto. Uma delas está relacionada ao modelo de design a ser adotado para a rotulagem. A outra consiste em definir quais são os pontos de corte para definir o que é uma quantidade alta de açúcar, sódio, gordura e outros.

A proposta de advertência do Idec é por meio de um triângulo preto com a borda branca localizado na parte frontal da embalagem. Entre as vantagens desse símbolo, o instituto destacou o fato de ser uma forma que não apresenta perda na percepção em tamanho reduzido, além do triângulo já ser uma convenção de advertência no Brasil. Já a indústria da alimentação defende o modelo de semáforo nutricional, adotado no Reino Unido, que utiliza cores (verde, amarelo e vermelho) para indicar o conteúdo nutricional baixo, médio e alto.

O Idec considera que o modelo de semáforo apresenta vários pontos negativos. “À primeira vista, as pessoas até consideram o uso de cores atrativo, mas se você pedir para elas identificarem o que é saudável terão dificuldade. Ela vai achar mais saudável o que tem dois verdes e dois amarelos ou o que tem três verdes e um vermelho? Essas escolhas não são claras”, aponta Ana Paula. Além disso, acrescenta, a ideia de ponto de corte que a indústria propõe é por porção. O fato de a informação ser dada por porção dificulta a comparação entre alimentos com porções diferentes.

Neste momento, estão sendo debatidas na Anvisa as evidências disponíveis para apoiar a adoção de um modelo ou de outro. Após esse debate, a diretoria colegiada da agência vai abrir esse processo a uma consulta pública, no final deste ano ou início do ano que vem. Encerrada a consulta pública, a diretoria colegiada da Anvisa deve aprovar uma resolução definindo as novas regras.

“Quanto açúcar tem num toddynho?”

No dia 9 de novembro, o Núcleo Interdisciplinar de Prevenção de Doenças Crônicas na Infância, da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizou uma atividade no centro de Porto Alegre para divulgar a campanha “Você tem o direito de saber” e alertar a população sobre a falta de informação nos rótulos de alimentos.

Em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com as secretarias municipal e estadual de Saúde, professores e nutricionistas da UFRGS distribuíram material de divulgação da campanha e conversaram com a população sobre os riscos que alimentos processados e ultraprocessados podem trazer à saúde.

A médica Noemia Perli Goldraich, coordenadora do Núcleo, destaca que, no atual modelo de rotulagem, a população não consegue saber o que há dentro dele. “As letras são muito pequenas e a linguagem não é clara. Você não encontra a palavra ‘açúcar’, por exemplo. O sal aparece como sódio. Nesta atividade que realizamos na quinta-feira, no centro de Porto Alegre, nós pegamos produtos como um “toddynho” e perguntamos para as pessoas se elas sabiam quanto açúcar tinha ali. Quando lemos o rótulo, não aparece açúcar, só carboidrato. Uma mãe jamais vai saber quanto açúcar tem ali dentro”, diz Noemia Goldraich.

Um grama de sal é igual a 500 miligramas de sódio, acrescenta a médica. “Quem é que vai andar com uma calculadora fazendo essas contas, ainda mais com aquelas letras minúsculas? Não tem como. Esse tipo de rotulagem é uma enganação, ela não diz nada pra ninguém. Por isso defendemos esse modelo dos triângulos, vigente no Chile, que diz claramente ‘muito sal’, ‘muito açúcar’, ‘muita gordura trans’. A indústria está enlouquecida com isso”.

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