31/03/2020 - Notícias
Uma das novas promessas em relação à pandemia de COVID-19 circulou tanto nos meios de comunicação tradicionais quanto nos grupos de Whatsapp: a bola da vez é a vitamina D e seu possível papel na redução do risco de contrair o novo coronavírus. O estudo que sustenta essa hipótese teria vindo de dois pesquisadores italianos da Universidade de Turim, que produziram uma nota sobre o assunto (“Possível papel preventivo e terapêutico da vitamina D na gestão da pandemia da COVID-19”, em tradução livre) (1). O material compila algumas publicações científicas e sugere que a incidência reduzida de COVID-19 em crianças esteja relacionada com menor prevalência de hipovitaminose D. Sustenta, ainda, a hipótese titular de que a vitamina D pode ser benéfica na prevenção e no tratamento da COVID-19, recomendando que a suplementação seja adotada como conduta enquanto mais estudos que analisam esta hipótese são desenvolvidos.
Antes que você corra para a farmácia para montar seu estoque pessoal de vitamina D, gostaríamos de pontuar algumas questões sobre as informações que vêm ganhando espaço nos últimos dias. É importante ter em mente que, apesar de estar sendo divulgado no Brasil como um estudo onde há “dados preliminares” (2) ou até uma “nova descoberta da medicina” (3), o material divulgado até o momento não configura um estudo científico e apenas elenca um conjunto de referências bibliográficas selecionadas sem um critério explícito, que discutem o papel da vitamina D em diferentes agravos em saúde, alguns deles sem relação com doenças virais. Não se trata de uma pesquisa que avaliou o papel preventivo e terapêutico da vitamina D sobre pacientes com COVID-19 com desenho de estudo adequado para tal fim, como alguns meios de comunicação fizeram parecer.
Dentre os estudos listados no documento da Universidade de Turim, um tem importância especial: a publicação americana intitulada “Suplementação de vitamina D poderia prevenir e tratar infecções por Influenza, Coronavírus e Pneumonia” (tradução livre) (4) é a referência principal para a recomendação dos autores italianos quanto à suplementação de vitamina D. Embora o título seja animador, o artigo americano, que foi publicado em 15 de março de 2020, poucos dias após o reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, é um preprint, ou seja, não foi avaliado por pares. Para quem não está acostumado ao processo de publicação de estudos científicos, explicamos: uma pesquisa, para ser publicada, precisa ser submetida a pareceristas, que geralmente são referência no assunto, e que avaliam o trabalho em diferentes aspectos. Esse processo tem por objetivo garantir o rigor metodológico e a qualidade das publicações.
Duas questões centrais nos chamam atenção em relação a esse artigo. Vamos nos debruçar sobre ele, em especial, porque é dele que os autores italianos aparentemente retiram suas recomendações de suplementação de vitamina D para a população sem diagnóstico de carência deste micronutriente no contexto da pandemia por COVID-19. Em primeiro lugar, o desenho de estudo utilizado, uma revisão narrativa, não adota critérios explícitos e sistemáticos na seleção e análise crítica da literatura, o que significa que tanto a seleção dos estudos incluídos quanto a interpretação destes está sujeita à subjetividade dos autores. A revisão sistemática, que busca ser exaustiva, é o desenho de estudo preconizado para artigos que pretendem orientar a tomada de decisão sobre intervenções em saúde. Não menos importante, os autores declaram, na seção de conflito de interesses, receber financiamento da Bio-Tech Pharmacal, Inc., uma empresa cujo carro chefe de vendas é justamente o suplemento de vitamina D.
É sobre esse último ponto que gostaríamos de jogar luz. Nosso intuito neste texto não é analisar o papel da vitamina D na infecção pelo novo coronavírus. Tampouco afirmamos que tal relação não existe. De fato, até o momento de publicação deste texto, não tivemos acesso a nenhum artigo científico sem conflitos de interesses, com desenho metodológico adequado e publicado em revista com credibilidade, que demonstre tal relação. Também não desejamos fazer uma discussão sobre desenhos de estudos, as suas limitações e as conclusões a que podem chegar. Na verdade, o que pretendemos é dar visibilidade à necessidade de estarmos atentos ao modo como informações com suposto respaldo científico vêm sendo produzidas e difundidas, em especial, no atual contexto de pandemia. Entre os áudios compartilhados por quem se declara profissional de saúde ou “especialista”, a divulgação de fake news (intencional ou não) e a possibilidade de interpretações equivocadas de informações técnicas, o cenário que se apresenta não é trivial. Agravando essa conjuntura, nos surpreende que parte dos profissionais de saúde e das agências de notícias se refira ao “estudo da Universidade de Turim” em suas comunicações de massa, o que sugere que a fonte original das informações veiculadas não foi consultada – talvez não tenha sido sequer buscada.
É necessário colocar em perspectiva os resultados dos trabalhos científicos considerando a força da evidência produzida e mobilizada por eles. No caso das publicações que discutimos aqui, encontramos problemas metodológicos que limitam o alcance de seus resultados. Não por acaso, tanto o Ministério da Saúde (5) quanto a Sociedade Brasileira de Reumatologia (6) já se pronunciaram, indicando que, até o momento, não é reconhecida nenhuma relação entre a vitamina D e a infecção pelo novo coronavírus. No entanto, tomamos esse caso como exemplo para levantar um debate que vem se destacando entre pesquisadores e tomadores de decisões no cenário global: a influência corporativa sobre a ciência. Conflitos de interesse colocam em xeque a confiabilidade das conclusões nas quais chegam os pesquisadores, e podem estar presentes em diversas etapas da produção científica, desde a escolha do assunto a ser investigado, até o desenho do estudo propriamente dito, passando ainda pela formulação da pergunta de pesquisa.
Interesses na produção de conhecimento
É verdade que há diversos tipos de interesse implicados na produção de conhecimento – o interesse pessoal, a vocação institucional, a busca por reconhecimento dos pares e da sociedade. A influência mais insidiosa, entretanto, está relacionada ao financiamento de pesquisas por parte de empresas que têm interesses privados nos resultados, o que vai na contramão de uma produção científica que tenha como objetivo o interesse público, o bem estar coletivo. Marion Nestle, pesquisadora e professora da Universidade de Nova York, publicou em 2019 o livro “Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos”, onde aponta para um corpo de artigos científicos na área da alimentação e nutrição que tiveram como conclusão resultados que favoreciam seus patrocinadores (7). Esforços semelhantes já foram empreendidos em relação à produção científica pela indústria farmacêutica, do tabaco e do álcool, entre outras.
A produção acadêmica sobre o papel da vitamina D em diversos desfechos em saúde é enorme. Mais de 40 mil artigos científicos foram publicados nos últimos 10 anos sobre o tema. Muitas descobertas importantes foram feitas nesse período. Mas também houve muita especulação e exploração irresponsável, em geral, com fins lucrativos. Só em 2019 o mercado de suplementos e testes dessa vitamina movimentou mais de U$1 bi (8). Não por acaso, foi tornado público recentemente que o maior proponente da suplementação vinha sendo financiado por diversos representantes da indústria farmacêutica há anos (9), e as divergências em torno dos valores de referência para essa vitamina e da necessidade de sua suplementação pela população se tornaram um caso paradigmático de influência de interesses privados sobre a pesquisa científica.
Apesar das controvérsias, não há dúvida quanto à participação da vitamina D na regulação de muitos sistemas do organismo, e isso inclui o sistema imune. Diferente de todas as outras vitaminas, nosso organismo é capaz de sintetizar o calcitriol, a forma ativa da vitamina D a partir dos precursores presentes na alimentação e da exposição à luz solar. É o calcitriol que desempenha as funções da vitamina D, incluindo as ações imunomodulatórias. A síntese dessa forma ativa é regulada pelo organismo, e não há evidências de que o consumo excessivo de outras formas de vitamina D contribua para aumentá-la (10, 11). A exposição da pele ao sol é, de longe, a nossa principal fonte de vitamina D, em especial nos trópicos. Agora que estamos confinados, precisamos ficar um pouco mais atentos à essa questão.
Ainda são necessárias mais evidências científicas, obtidas por meio de estudos com rigor metodológico e isentos de conflitos de interesse, para esclarecer o possível papel da vitamina D no COVID-19. É quase desnecessário dizer que a hipovitaminose D é uma condição clínica que deve ser diagnosticada e tratada, a despeito da atual situação epidemiológica do país. A deficiência de vitamina D é um problema para a saúde pública, assim como sua toxicidade.
Em tempos de COVID-19, é desejável que busquemos nos manter mais resistentes às infecções. Manter uma alimentação adequada e saudável, baseada em alimentos in natura e minimamente processados conforme indica o Guia Alimentar para a População Brasileira (12), buscar alternativas para atividades físicas, mesmo em isolamento, e se expor ao sol em casa vai ser suficiente para a maioria das pessoas. Cuidem-se, busquem fontes confiáveis de informação, sejam críticos. E fiquem em casa!
Referências:
- Nestle, Marion. Uma verdade indigesta. São Paulo: Elefante, 2019
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Institute of Medicine. Reference Intakes for Calcium and Vitamin D. Washington, DC: The National Academies Press, 2011.
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Touvier M, Deschasaux M, Montourcy M et al (2015) Determinants of vitamin D status in Caucasian adults: influence of sun exposure, dietary intake, sociodemographic, lifestyle, anthropometric, and genetic factors. J Invest Dermatol 135:378-88.
Autores
Maria Birman Cavalcanti
Discente de graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), membro do Comitê Gestor do Núcleo Rio de Janeiro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
Flávia Fioruci
Docente do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Fernando Lamarca
Docente e membro do Núcleo de Segurança Alimentar e Nutricional (NUSAN) da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), membro do Comitê Gestor do Núcleo Rio de Janeiro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
Cláudia Bocca
Docente e vice coordenadora do Núcleo de Segurança Alimentar e Nutricional (NUSAN) da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), membro do Núcleo Rio de Janeiro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
9 Comments
byEdilene
Excelente texto!
bySônia De Negri
Sincero agradecimento pela relevante análise, clara e confiável, destinada aos interessados e, segundo as orientações científicas. Sônia De Negri, Dra, Nut, Docente universitária UFPel.
byNilma de Souza Arraes
☝️ excelente esclarecimento!
Li atentamente!
Precisamos realmente está atentos a divulgação de informações que na realidade fomentam a indústria farmacêutica ou até mesmo a indústria de alimentos Processados.
O último parágrafo,no entanto,precisa ser copiado e divulgado. Porque reforça a importância no momento atual da alimentação saudável ,do banho de sol diário e atividade física.
byAdélia Dias Brito
Muito bom. Vou baixar pra ler e estudar . Obrigada
byIarema
Agradeço as autoras o texto informativo relevante e de fácil entendimento , contribuindo para atitudes corretas e nos afastando da manipulaçao corporativa farmacêutica e midiática, que não contribui em nada, especialmente neste momento .
byAna Tomazoni
Parabéns pelo estudo e reflexão sobre o tema! Realmente a natureza nos presenteia com o Sol e os alimentos ricos em variedades de nutrientes principalmente a Vitamina D.
byJuliane Cristina de Melo Silva
Ótimo estudo! Bem explicativo e claro!
byLouvercy
alimentação saudável pode ser considerada como uma medida preventiva do CORONAVÍRUS?
byRosa Mattos
Não há evidência robusta que sustente a hipótese de que a vitamina D aumente a imunidade. O mais correto seria dizer que sua deficiência, assim como a de vários outros nutrientes que estão presentes em uma alimentação adequada e saudável, pode prejudicar a resposta imunológica.