Nota Pública sobre Políticas de Erradicação da Fome

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Nota pública sobre as Políticas (Nacional, Estadual e Municipal) de Erradicação da Fome e Promoção da Função Social dos Alimentos

São Paulo, 26 de outubro de 2017

A Aliança pela Alimentação Adequada e saudável manifesta seu repúdio a iniciativas recentes que, anunciadas como tendo os propósitos de erradicação da fome, redução de desperdício de alimentos e de promoção da função social do alimento, contrariam o direito humano à alimentação adequada, as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional vigentes no país e as concepções de alimentação adequada e saudável que as orienta.

Em oito de outubro de 2017, foi divulgada a sanção da Lei 16.704/2017 (PL 550/2016), que institui a Política Municipal de Erradicação da Fome e Promoção da Função Social dos Alimentos e também do programa “Alimento Para Todos”. Para este programa, segundo divulgado na imprensa e em outras mídias, foi estabelecida uma parceria entre a Prefeitura Municipal de São Paulo e a Plataforma Sinergia para a produção e distribuição de um produto à população em situação de fome e vulnerabilidade social, produzido a partir de produtos alimentícios próximos à data de vencimento ou fora do padrão de comercialização. A partir desse fato, tomamos conhecimento também de outros quatro projetos de lei com teor semelhante que se encontram em tramitação no País:

  • Assembleia Legislativa de São Paulo: PL 19/2017, autoria Deputada Célia Leão [Institui e estabelece diretrizes para a Política Estadual de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos no Estado de São Paulo – PFSA-SP]
  • Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro: PL 2388/2017, autoria Deputado Wagner Montes [institui e estabelece diretrizes para a Política Estadual de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos no Estado do Rio de Janeiro – PFSA-RJ, fundamentada em uma sociedade fraterna, justa e solidária]
  • Câmara Legislativa do Distrito Federal: PL 1465/2017, autoria Deputado Estadual Rodrigo Delmasso [institui e estabelece diretrizes para a Política Distrital de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos – PEFSA-DF]
  • Senado Federal: PLC 104/2017, autoria Deputado Arnaldo Jardim [Institui e estabelece diretrizes para a Política Nacional de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos (Pefsa), fundamentada em uma sociedade fraterna, justa e solidária]

A lei sancionada no município de São Paulo, o Programa e os projetos de lei acima mencionados têm em comum as seguintes características: contrariam o direito humano à alimentação adequada, as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional vigentes no país e a concepção de alimentação adequada e saudável que as orienta.

Diante disso, apresentamos as seguintes considerações:

O Direito Humano à Alimentação Adequada é um direito constitucional e deve ser garantido a partir de duas dimensões: i) estar livre da fome e da desnutrição e ii) ter acesso a uma alimentação adequada e saudável que respeite a dignidade, os valores humanos e culturais e que não esteja sujeita aos interesses de mercado.

A alimentação adequada e saudável, segundo definição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2007), é “a realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo da vida e as necessidades alimentares especiais, pautada pelo referencial tradicional local. Deve atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), às dimensões de gênero e etnia, e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados.” O Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014,  que hoje orienta as políticas públicas de alimentação e nutrição e de Segurança Alimentar e Nutricional, apresenta definição muito semelhante a esta.

– Na lei sancionada no município de São Paulo e nos projetos de lei acima mencionados, é colocado que “Não cumprem sua função social os alimentos considerados pela legislação vigente como aptos para o consumo humano que não tiverem tal destinação e que poderiam tê-la caso fossem submetidos a beneficiamento ou processamento adequados”. E, ainda, “Para garantir o cumprimento de sua função social, o alimento considerado pela legislação vigente como apto para o consumo humano deve ser submetido a técnicas adequadas de beneficiamento ou de processamento”. Ou seja, segundo esses documentos, o processamento (mínimo ou ultraprocessamento industrial) é condição necessária para que os alimentos estejam cumprindo sua “função social”. Essa perspectiva contraria os preceitos do Guia Alimentar para a População Brasileira. Segundo o Guia, uma alimentação adequada e saudável é baseada no consumo de alimentos in natura ou minimamente processados.

– Na lei sancionada no município de São Paulo e nos projetos de lei acima mencionados, ainda há a seguinte definição: “erradicação da fome: o combate aos diferentes níveis de insegurança alimentar da população, segundo as categorias da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA”. Vale dizer que a  Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2013, na qual foi utilizada a EBIA, apontou que, do total de domicílios, 3,2% foram classificados como Insegurança Alimentar Grave (IAG), ou seja, restrição alimentar na qual para pelo menos uma pessoa do domicílio foi reportada alguma experiência de fome no período investigado. Em 2004, a IAG era de 6,9% e as principais causas desta queda foram as políticas públicas de valorização do salário mínimo, de fortalecimento da agricultura familiar e de transferência condicionada de renda[1]. Ou seja, diferentemente de outras realidades agudas (por exemplo, guerras, catástrofes naturais), em que poderia caber uma estratégia de uso de produtos formulados, no Brasil, a fome é fruto de profundas injustiças e desigualdades sociais e sua superação pressupõe políticas públicas estruturantes.

– O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019, que concretiza as diretrizes da V Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ocorrida em novembro de 2015, instância máxima do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional, assume como desafio “Combater a insegurança alimentar e nutricional e promover a inclusão produtiva rural em grupos populacionais específicos, com ênfase em Povos e Comunidades Tradicionais e outros grupos sociais vulneráveis no meio rural”. Ele  prevê “a construção e a execução de políticas diferenciadas e específicas, com base nos princípios do etnodesenvolvimento, que respeitem as culturas, as formas de organização social, as especificidades étnicas, raciais e as questões de gênero, é o caminho a ser perseguido. É preciso assegurar a continuidade e o aperfeiçoamento das políticas que ampliam as condições de acesso à alimentação dos que ainda se encontram mais vulneráveis à fome, de forma a também superar a desnutrição nestes grupos”.

– Referente aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Brasil assumiu compromissos referentes à Segurança Alimentar e Nutricional. O Objetivo 2 “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável” é composto por 5 metas assumidas pelo Brasil. Entre elas, estão o acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano, incentivos aos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores. Ou seja, também nessa iniciativa mundial com a qual o Brasil se comprometeu, o caminho apontado é o de estratégias estruturantes e não o de medidas que não enfrentam os determinantes da fome.
– Na lei sancionada no município de São Paulo e nos projetos de lei acima mencionados, a definição de segurança alimentar apresentada (“acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais”) suprime trechos da definição presente na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11.346/2006) – Art. 3º: “A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”. A supressão destes trechos mutila preceitos fundamentais deste conceito orientador das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional e pode implicar a implementação de estratégias que contrariem o Direito Humano à Alimentação Adequada.

O conceito de função social tem sido usado no nosso ordenamento jurídico para limitar o exercício de direitos e bens, como, por exemplo, a propriedade, a fim de garantir que estes direitos e bens sejam usufruídos de acordo com todo nosso sistema jurídico e sem que haja violação de direitos de outras pessoas. O que os projetos de lei em questão fazem é facilitar o investimento de recursos públicos para evitar desperdício e prejuízo de empresários do ramo da alimentação, permitir renúncia fiscal e, de outro lado, promover a distribuição de produtos comestíveis, que não atendem ao que está determinado no nosso ordenamento jurídico como alimento adequado. Portanto, as leis que estão sendo aqui questionadas não promovem qualquer “função social” dos alimentos e estão em sentido contrário aos instrumentos e às normas internacionais, constitucionais, legais e administrativas que dispõem sobre alimentação como direito. Além disso, a dimensão da equidade deve ser primordialmente considerada nas políticas que se propõem a recomendar que a sociedade eticamente distribua os bens, neste caso, atribuir aos alimentos uma “função social”. O conceito de equidade se refere a prestar assistência aos indivíduos de acordo com suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa, ou seja, reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde e nas necessidades das pessoas. Neste sentido, os indivíduos que seriam assistidos por essas políticas previstas nos projetos de lei aqui questionados já apresentam graves problemas em relação ao acesso a alimentos saudáveis e de qualidade. Portanto, à população em situação de fome e vulnerabilidade social deve-se garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável, no intuito de reduzir as desigualdades. E, o que se entende por alimentação adequada e saudável, sabemos, de maneira alguma corresponde à distribuição de um produto produzido a partir de produtos alimentícios próximos à data de vencimento ou fora do padrão de comercialização.

É inegável que o desperdício de alimentos é um problema de grande magnitude no país e no mundo e ocorre em todas as etapas do sistema alimentar, não só no processamento dos alimentos. Programas que atuam no nível do consumo e que se mostram bem sucedidos, como os bancos de alimentos e os restaurantes populares, precisam ser fortalecidos e expandidos.

Diante do exposto, em nome da rede de pesquisadores, trabalhadores e representantes de associações civis que compõem a Aliança para Alimentação Adequada e Saudável, manifestamos nosso repúdio a essas iniciativas, uma vez que contrariam os marcos legais e as diretrizes que hoje orientam as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional. Reiteramos nosso compromisso com o direito humano à alimentação adequada, com o conceito de alimentação adequada e saudável que hoje orienta as políticas públicas no Brasil, com as políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional vigentes no País, nelas incluído o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 2016-2019.

[1] FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil. 2015. Disponível em: www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf