A FIAN Brasil é uma das organizações integrantes da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, e acaba de ser integrada como nova integrante do conselho gestor. E está com um novo projeto em curso, o “Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola”, que visa criar e fortalecer competências e marcos regulatórios que garantam que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) promova alimentação e nutrição adequadas como direito no Brasil, com foco na restrição da oferta de produtos ultraprocessados.

Nesta entrevista, Vanessa Manfre, assessora de Políticas Públicas da FIAN Brasil, nutricionista e mestre em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP,  fala um pouco sobre o conceito do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas (Dhana), e sobre a atuação da FIAN Brasil diante dos desafios do contexto atual.

Vivenciamos um cenário de volta ao Mapa da Fome e é preciso que haja mobilização da sociedade, luta, resistência e pressão ao poder público, para que sejam fomentadas as medidas de incentivo à agricultura familiar – que estimulem a produção, a disponibilidade e o acesso à comida de verdade às populações vulneráveis, assim como medidas de distribuição de renda”, afirma Vanessa Manfre, da FIAN Brasil.

Como é a atuação da FIAN Brasil?

Vanessa Manfre: A FIAN Brasil atua em três eixos: monitoramento de violações de direitos humanos junto a determinadas comunidades e grupos populacionais, com foco no direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana); exigibilidade nacional e internacional de normas, jurisprudência e políticas públicas que promovam esse direito; e construção de uma cultura de direitos.

Desenvolvemos ações de formação, como palestras e cursos, articulamos e trabalhamos em colaboração com entidades da sociedade civil organizada e movimentos populares, participamos de campanhas nacionais ou internacionais sobre os temas que abordamos, produzimos conhecimento e incidimos nos três poderes do Estado Brasileiro, para exigir que cumpram com as suas responsabilidades legais no tocante aos direitos humanos, em especial o Dhana. Também acionamos organismos internacionais responsáveis por matérias de direitos humanos, com o apoio da FIAN Internacional.

O que é o direito à alimentação e à nutrição?

O direito à alimentação é um direito humano fundamental que, após muita luta e mobilização da sociedade, foi incluído na Constituição Brasileira, em 2010. Assim como os direitos à saúde, educação, moradia e trabalho, dentre outros, é necessário para assegurar uma vida digna e segura.

É um direito pactuado internacionalmente, respaldado por documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (Pidesc). É universal, ou seja, de todas as pessoas, e não pode ser cedido e nem retirado, independentemente de legislação nacional ou local. Como qualquer direito humano, deve ser respeitado, protegido e garantido pelo Estado.

Mas quando falamos em direito à alimentação, temos que pensar além da perspectiva de estar livre da fome, pois não basta comer para satisfazer as necessidades de energia e de nutrientes. A alimentação vai além disso, pois é a forma como os seres humanos se constroem, não apenas fisicamente, mas também simbolicamente, como seres sociais e culturais que são. Assim, para que esse direito seja plenamente realizado, é preciso considerar a perspectiva da alimentação e da nutrição adequadas.

É aí que entra o conceito de Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas – também conhecido como Dhana?

Sim, essa nomenclatura foi proposta pela FIAN a partir da reflexão sobre temas urgentes relacionados a esse direito. Além de considerar o modelo de produção e consumo de alimentos, é preciso analisar quais grupos são mais atingidos por esse modelo e por quais motivos. Assim, a FIAN tem incorporado à definição de Dhana, além das dimensões da soberania alimentar e da nutrição, as questões de gênero, raça e etnia.

É importante considerar que a realização do Dhana pressupõe um modelo sustentável e justo de produção e consumo de alimentos, para quem produz, quem consome e para o meio ambiente. A soberania alimentar, por sua vez, relaciona-se ao direito dos povos de decidir sobre quais alimentos produzir, consumir e como.

“A dimensão da nutrição, incorporada mais recentemente ao conceito de Dhana, traz a ideia de que a alimentação deve promover uma nutrição adequada e, assim, promover a saúde, a partir de alimentos produzidos de forma sustentável e que sejam cultural e socialmente adequados. A ideia é que a alimentação deve nutrir não apenas o corpo, mas o ser. O consumo deve ser adequado ao ciclo da vida, às necessidades fisiológicas, à cultura, aos valores, aos hábitos e às tradições.”

Além dessas dimensões, é preciso compreender os elementos-chave para a realização do Dhana: a disponibilidade de alimentos, isto é, a existência de condições e recursos para produzir ou adquirir ou, ainda, receber por provimento, por exemplo, de cestas básicas; a adequação à cultura, à etapa do ciclo da vida, às necessidades nutricionais ou de saúde específicas e aos hábitos alimentares; o acesso econômico e físico a uma alimentação adequada, que inclui alimentos frescos e saudáveis; e a estabilidade, ou seja, garantir a disponibilidade e o acesso a alimentos adequados de maneira estável, regular e permanente. Por fim, para a concretização do Dhana é preciso um sistema alimentar global justo, que priorize a soberania alimentar dos países e dos povos, formado por sistemas locais que deem conta de todas essas dimensões.

Você poderia explicar um pouco sobre a ligação entre desigualdade de gênero, raça e etnia no acesso ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas?  

Mulheres, população negra, indígenas, povos e comunidades tradicionais são grupos mais vulneráveis a sofrer violações de todos os direitos fundamentais. A prevalência de insegurança alimentar e nutricional é maior nesses grupos, que sofrem, sistematicamente, a violação do Dhana, seja pela falta de acesso à terra produtiva ou a recursos naturais para produzir, ou por ausência da disponibilidade de alimentos saudáveis, ou pela falta de acesso econômico ou por outras razões, como a falta de acesso a políticas públicas em geral.

“Dentro de cada um desses grupos, a mulher é a mais fragilizada pelas desigualdades, e a violência sofrida por ela também impacta a realização dos seus direitos, incluindo o Dhana. Um exemplo disso é o fato de que, de toda a população que passa fome no mundo, 70% são mulheres ou meninas. E, no Brasil, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 mostrou que mais da metade dos domicílios com insegurança alimentar grave eram chefiados por mulheres. As desigualdades entre homens e mulheres se manifestam em diversos espaços, seja na família, na política, no trabalho, na economia, na saúde, na agricultura.”

Diante de tantas desigualdades, destaca-se o protagonismo das mulheres na luta pela garantia de direitos, pela soberania e segurança alimentar e nutricional, e se mostram fundamentais políticas afirmativas que respondam às diferentes realidades vividas por elas. São necessários programas e ações que viabilizem o trabalho em condições equivalentes aos homens, em todos os espaços, inclusive no campo, e que possibilitem a sua autonomia econômica e política.

Questões de etnia e raça também provocam efeitos diretos sobre as possibilidades de realização do Dhana. Grupos como povos indígenas, população negra e ciganos, em razão da discriminação, acabam tendo menor acesso à renda, à terra, ao território, a serviços de saúde e à segurança, dentre outros determinantes de segurança alimentar e nutricional. Nesse sentido, dados da POF 2017-2018 chamam a atenção para a prevalência de insegurança alimentar em domicílios cuja pessoa de referência se autodeclarava parda ou preta. Além disso, é importante destacar que estes grupos são violentamente afetados pelo racismo institucional, exemplificado pelas graves violações sofridas pelo povo Guarani e Kaiowá e pelo genocídio de crianças e jovens negros.

Podemos citar, também, como exemplo, as comunidades quilombolas, em que as desigualdades estão intimamente relacionadas à questão do acesso à terra e ao território, uma vez que existe uma grande dificuldade em ter reconhecida a posse de suas áreas. Além disso, existe a limitação de acesso a programas sociais e políticas públicas de fomento à agricultura.

O que é o projeto Crescer e Aprender com Comida de Verdade – pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas na Escola?

Com esse projeto, queremos gerar informação e conhecimento sobre os principais fatores que impedem a execução de uma alimentação escolar pautada pelo Dhana; difundir uma cultura de garantia de direitos, sobretudo esse, na sociedade como um todo; divulgar os riscos de uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados; promover a exigibilidade de direitos no contexto do Programa Nacional de Alimentação Escolar; realizar ações de advocacy junto aos atores envolvidos na execução do programa, à comunidade escolar, à sociedade e ao poder público; e contribuir para a construção ou o aprimoramento dos marcos legais ligados a esses objetivos.

O projeto é apoiado pela organização Global Health Advocacy Incubator e, além da ACT Promoção da Saúde, conta com a parceria da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), do Instituto Desiderata, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB), do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e da FIAN Colômbia.

Como vocês vêem o contexto brasileiro em relação à alimentação? Voltamos ao Mapa da Fome ou corremos risco de voltar?

 Em 2014, o Brasil saiu, pela primeira vez, do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), ao alcançar a meta de menos de 5% de sua população vivendo o flagelo da fome, em situação de insegurança alimentar grave.

“Entretanto, nos últimos anos, sobretudo a partir do golpe de Estado de 2016, vivenciamos um contexto de retrocessos, de aumento da pobreza extrema e da fome, ocasionado pelo desmonte de programas e políticas sociais, impulsionado pela emenda constitucional que limita os gastos públicos por 20 anos (“Teto dos Gastos Sociais”). Ela impacta programas sociais como o Bolsa Família e reduz o orçamento de programas de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que viabiliza as compras públicas de alimentos destinadas a populações em situação de insegurança alimentar, além de programas de garantia do acesso à água no Semiárido.”

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2017 e 2018, 4,6% dos domicílios brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave, e a fome aumentou 43,7% em cinco anos (2013 a 2018). Além do desmonte de políticas sociais, é importante destacar o desmantelamento de órgãos participativos, como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, responsável pelo controle social e pela participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional.

E, durante a pandemia de Covid-19, esse contexto se agravou ainda mais, com o aumento do desemprego e a alta no preço dos alimentos que são itens básicos na alimentação do brasileiro, como o arroz e o feijão.

“Assim, atualmente, vivenciamos um cenário de volta ao Mapa da Fome e é preciso que haja mobilização da sociedade, luta, resistência e pressão ao poder público, para que sejam fomentadas as medidas de incentivo à agricultura familiar – que estimulem a produção, a disponibilidade e o acesso à comida de verdade às populações vulneráveis, assim como medidas de distribuição de renda.”