Foto: Pedro Gontijo. Imprensa MG

A promoção da alimentação escolar saudável sofreu um grave retrocesso em Minas Gerais. O decreto que regulamentava a Lei da Cantina Saudável foi revogado pelo governador Romeu Zema no dia 8 de outubro de 2020. A Lei 15.072 aguardava uma regulamentação desde que foi aprovada, em 2004. Em dezembro de 2018, após uma espera de 14 anos, o decreto 47.557 finalmente definiu as regras para a promoção da alimentação saudável nas escolas públicas e privadas. Mas o decreto foi suspenso pelo governador Zema em junho de 2019, no momento em que entraria em vigor.

A Lei 15.072, aprovada em 2004, define que alimentos fornecidos e comercializados nas escolas públicas e privadas têm que seguir critérios de qualidade nutricional, sem excesso de sódio, açúcar e gordura. Mas sem uma regulamentação que defina a lista de alimentos e outras informações importantes, a lei não consegue ser aplicada efetivamente.

A revogação do decreto 47.557 garante a manutenção de alimentos ultraprocessados nas cantinas escolares de todo o estado. Salgadinhos de pacote, biscoitos recheados, balas, refrigerantes e bebidas açucaradas são produtos ultraprocessados e o seu consumo está associado a doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como obesidade, diabetes, hipertensão e câncer. O comércio de tais produtos nas cantinas escolares, seja da rede pública ou privada de Minas Gerais, está em desacordo com a lei em vigor desde 2004 e à espera da regulamentação.

Nem mesmo a Carta Aberta em Defesa da Lei da Cantina Saudável em MG foi considerada pelo governador Zema. O documento reuniu a assinatura de 80 organizações e coletivos nacionais e locais que atuam na área da segurança alimentar e nutricional, do direito do consumidor, da educação e na defesa dos direitos da infância. A Carta Aberta pedia o reconhecimento da urgência da regulamentação da Lei da Cantina Saudável (Lei 15.072/2004), visto que a crise sanitária da Covid-19 reforçou a importância da prevenção das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) em todas as faixas etárias da população. As organizações reivindicavam também que a indefinição na volta às aulas presenciais, em função da pandemia, não representasse um motivo para se adiar medidas que terão impacto positivo na saúde dos estudantes, contribuindo para evitar doenças desde a infância.

Outra reivindicação é que o governador Zema priorize o compromisso e a obrigação de zelar pela saúde de crianças e adolescentes também no ambiente das escolas públicas e privadas, independentemente das diretrizes com relação à economia do partido político pelo qual foi eleito. A defesa dos princípios do liberalismo econômico coloca em risco a proteção da saúde e dos direitos da infância.

Histórico de retrocessos

A revogação do decreto é mais um duro golpe para a promoção da alimentação saudável nas escolas mineiras. A suspensão do decreto em junho de 2019, no momento em que entraria em vigor, após o período de adaptação, interrompeu um processo importante para a promoção da saúde dos estudantes porque as escolas já estavam se adaptando à nova realidade, com a retirada dos alimentos não saudáveis das cantinas. Com a suspensão do decreto naquela época, alimentos como salgadinhos de pacote e bebidas açucaradas voltaram para as cantinas. A revogação fragiliza ainda mais o processo de efetivação da Lei 15.072 que proíbe a oferta de alimentos ricos em sódio, gordura e açúcar nas escolas públicas e privadas.

Após a primeira suspensão, o governo definiu a criação de um grupo de trabalho (GT) para a avaliação dos impactos econômicos do decreto sem a participação da sociedade civil. Somente com muita insistência, o GT recebeu representantes de movimentos pela infância, pela alimentação saudável e pesquisadoras em alimentação escolar da Universidade Federal de Minas Gerais.

A revogação do decreto desconsidera o esforço do grupo de trabalho que contou com a participação de representantes da sociedade civil, na opinião da professora e pesquisadora do Grupo de Estudos e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (GEPPAAS) da UFMG, Larissa Loures. “Nós, profissionais e ativistas, que participamos das reuniões do grupo de trabalho que revisou o decreto levamos pesquisas nacionais e internacionais que mostram a urgência de se combater a obesidade infantil e a importância da adoção de medidas para tornar o ambiente escolar mais saudável”, lembrou Larissa.

Para Desirée Ruas, da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, a revogação ignora as recomendações do relatório de 272 páginas construído pelo GT, que foi criado pelo próprio governo para a “realização de estudos e análises sobre a aplicação do Decreto nº 47.557, de 2018, em seus aspectos econômicos e sociais, compatibilizando-os com a promoção da saúde dos alunos e a prevenção da obesidade infantil”. Ela reforça que o conteúdo do decreto 47.557 segue as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e do Ministério da Saúde sobre a importância da mudança da alimentação no ambiente escolar. Além disso, o Brasil é signatário do Plano de Ação para a Prevenção da Obesidade em Crianças e Adolescentes, da OMS e da OPAS, e todos os estados brasileiros precisam empreender esforços para prevenir as doenças decorrentes da alimentação inadequada na infância e na adolescência.

Revogação piora a qualidade das cantinas mineiras

Os resultados preliminares de um estudo piloto realizado em 2019, pelo Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostraram que os alimentos como refrigerantes e salgadinhos de pacote tinham lugar de destaque nas cantinas das escolas privadas de Belo Horizonte antes da pandemia. Os refrigerantes foram encontrados em 27,5% das escolas pesquisadas e as bebidas açucaradas em 70%. Balas, confeitos e chocolates, por exemplo, foram encontrados em 68,8% das cantinas visitadas. Apesar da disponibilidade de opções saudáveis como frutas e salada de frutas, no comércio nas escolas predominavam alimentos considerados não saudáveis. Essas opções podem influenciar as escolhas feitas pelos alunos e contribuir para o aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como obesidade e diabetes em Minas Gerais, como avalia a equipe do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (GEPPAAS), que realizou o estudo com o apoio do Ministério Público de Minas Gerais.

“A revogação do decreto da Lei da Cantina Saudável em MG é inaceitável. O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) é para todos os indivíduos. Mas é preciso um olhar prioritário da sociedade e do poder público para as crianças e os adolescentes, pois o estado nutricional nesses ciclos da vida pode comprometer a saúde futura. Sabe-se da influência do ambiente na saúde das populações e, neste sentido, é necessário que crianças e adolescentes cresçam em ambientes alimentares saudáveis para adquirirem hábitos saudáveis”, alerta Regina Oliveira, presidente do Conselho Regional de Nutricionistas (CRN9-MG).

O conteúdo da lei mineira 15.072/2004 segue as diretrizes apontadas por organizações internacionais que atuam pela promoção da saúde. A OMS, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o Ministério da Saúde recomendam a transformação das cantinas escolares em ambientes saudáveis como uma das estratégias para combater a obesidade infantil que cresce em todo o mundo.

Obesidade infantil tende a aumentar

O consumo de alimentos não saudáveis é uma das causas da obesidade e do surgimento de problemas de saúde, como diabetes, hipertensão e câncer, também em crianças e adolescentes. Como é uma questão grave e que aumenta a cada dia em todo o mundo, a obesidade infantil demanda um esforço coletivo com ações do Estado, das escolas e das famílias. O maior risco de agravamento das condições de saúde em pacientes com obesidade, diabetes ou hipertensão e que adoecem pela Covid-19 também preocupa nutricionistas e médicos.

Sem políticas públicas consistentes, como defende a Lei da Cantina Saudável em MG, o enfrentamento da obesidade infantil não terá sucesso. Segundo o Atlas Mundial da Obesidade e a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil estará na 5º posição no ranking de países com o maior número de crianças e adolescentes com obesidade em 2030, com apenas 2% de chance de reverter essa situação, se não forem adotadas medidas eficazes para frear os números. Dados do Ministério da Saúde mostram que, no Brasil, uma em cada três crianças, entre cinco e nove anos, tem excesso de peso. Em Minas Gerais, temos 29,3% de crianças entre cinco e nove anos com excesso de peso e 13,3% com obesidade. Os dados foram extraídos do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), citados no Atlas da Obesidade Infantil no Brasil. O número de crianças e adolescentes (de cinco a 19 anos) obesos em todo o mundo aumentou dez vezes nas últimas quatro décadas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Alimentos saudáveis na rede pública e na privada

A defesa da urgência da regulamentação da Lei 15.072 tem relação com a preocupação com a qualidade da alimentação na rede privada de ensino já que os alunos da rede pública estão protegidos pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O Programa proíbe a inclusão de alimentos ultraprocessados nos cardápios oferecidos na rede pública de ensino como forma de garantir a saúde de crianças e adolescentes. Em maio de 2020, a nova resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) alterou a legislação do PNAE para tornar a alimentação escolar ainda mais saudável na rede pública de ensino de todo o país. As novas medidas, adotadas por meio da Resolução nº6/2020, estão alinhadas ao Guia Alimentar para a População Brasileira e ao Guia para Crianças Brasileiras menores de 2 anos, este último lançado em 2019.

Outro ponto que reforça a importância da cantina saudável em todas as escolas é que, em 2018, a educação alimentar e nutricional também passou a ser um tema transversal do currículo escolar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, pela Lei nº 13.666/2018, e em consonância com o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas.