Artigo de Elisabetta Recine*, Mariana Santarelli** e Valéria Burity***, publicado originalmente no site Congresso em Foco.

Em abril de 2021, a Rede PENSSAN divulgou os resultados de um inquérito que mostrou, para quem quisesse ver, que mais da metade da população brasileira estava em situação de insegurança alimentar. Só agora, no início de março de um ano eleitoral, a vice-presidência da Câmara dos Deputados, que coordena a Frente Parlamentar de Combate à Fome no Brasil, chama uma reunião para formular diretrizes e gerar mobilização para o enfrentamento desse quadro. Dentre outras propostas ainda não muito nítidas, convoca grandes empresas e sociedade civil para discutir uma ação coordenada, ato que se chamou “Por um Brasil sem Fome”.

Desde a década de 1930, Josué de Castro afirmava que a superação deste problema exige o enfrentamento de suas causas estruturais. Combate-se a fome garantindo terra, emprego, acesso a alimentos saudáveis e baratos, saúde e tudo mais que possa erradicar pobreza e desigualdade. Combate-se a fome enfrentando o racismo, o machismo e todas as manifestações de opressão. Combate-se a fome com a construção de políticas públicas efetivas. Políticas que desde 2016, e de forma mais acelerada a partir do governo Bolsonaro, vêm sendo desintegradas. Muito deste desmonte tem se originado, ou passado feito água, no Congresso. O orçamento de programas como o de Aquisição de Alimentos (PAA), o de Alimentação Escolar (Pnae) e o Um Milhão de Cisternas (P1MC) é drenado sem resistência da maior parte de nossos congressistas.

Fome, direitos e políticas públicas

A fome aumentou por causa dos ataques quase diários a direitos trabalhistas, previdenciários e territoriais, somados à paralisação de programas de segurança alimentar e nutricional, de geração de renda, de apoio à agricultura familiar e de acesso à água, dentre outros. Uma verdadeira terapia de choque.

A garantia do direito humano à alimentação e à nutrição se constrói com políticas e instituições públicas, e com participação popular. Essa tem sido a posição das organizações da sociedade civil e movimentos sociais que atuam nesse campo. Tal posição foi defendida por parlamentares da Frente de Segurança Alimentar e por representantes da sociedade que participaram do ato.

Quem sabe dando ouvidos a essas vozes, no dia os organizadores até discursaram nessa linha. Mas preocupa como o tema de doações de alimentos aparecia na convocação, pela centralidade e pelas companhias previstas – basicamente, os donos do mercado.

Cabe ressalvar que, nos últimos dois anos, movimentos, inúmeras ONGs, associações de bairro periféricas e outros grupos trabalharam exaustivamente em ações de doação de alimentos, o que demonstra que segue vivo o espírito de solidariedade. Num país em que metade da população tem fome, come mal ou teme que falte o mínimo na mesa da família, essas iniciativas tentam reduzir o enorme prejuízo causado pela pandemia e, sobretudo, pelo desmonte de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos.

Doações são necessárias, mas jamais serão suficientes para enfrentar o flagelo da fome, como atestam as próprias articulações à frente desses esforços. O governo brasileiro tem a obrigação de superar essa situação. Essa é a parte do recado que o presidente da República e boa  parte do Congresso Nacional parecem ainda não ter compreendido. Falta coerência entre o que se falou no evento e o que de fato vem ocorrendo no Brasil.

A contradição das doações de alimentos por corporações

Especialmente as doações oferecidas por grandes corporações não representam uma solução honesta, tampouco efetiva, para o combate à fome. Esses grupos econômicos, aliados a instituições financeiras, concentram cada vez mais renda e dominam cada vez mais os sistemas alimentares. Grande parte do que vendem e doam são produtos ultraprocessados, que nem mesmo podem ser considerados alimentos. Trata-se de fórmulas cheias de aditivos que as tornam “irresistíveis” (como sussurram as propagandas), e que podem ter grave impacto na saúde, por meio de seu consumo, e no meio ambiente, por conta de seu processo de produção. O oposto, em todas essas dimensões, da comida de verdade.

O engajamento em campanhas dá às empresas mais poder, ganho de marca e valor de mercado, enquanto acentua desigualdades, na medida em que faz com que os grupos mais empobrecidos – e aqui estamos falando especialmente de mulheres e homens negros – sejam cada vez mais alijados do direito a uma alimentação saudável e adequada. Essa tendência de captura corporativa de espaços de governança, que marcou a Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares da ONU, e a substituição de políticas públicas por ações de “boa vontade” empresarial é um enorme risco de mudança de trajetória das escolhas que nos levaram a sair do Mapa da Fome.

Se queremos mesmo agir para acabar com essa afronta à saúde, à dignidade humana e à própria vida, a direção é reverter o desmonte de políticas sociais que tem se dado no Legislativo, é fortalecer nossa capacidade de regulação do poder econômico. E retomar um sentimento de nação em que a fome é uma vergonha, e seu fim, uma urgência, jamais uma estratégia de marketing corporativo ou moeda eleitoral.

*Elisabetta Recine é membro da Comissão Organizadora da Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CPSSAN) e integrante do Núcleo Gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
**Mariana Santarelli é membro do núcleo executivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN)
***Valéria Burity é secretária-geral da FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas