04/08/2020 - Blog Notícias
A notícia era boa. Uma imagem viralizou na internet alertando pais, mães e consumidores para a diferença entre dois produtos distintos mas cuja embalagem vem causando muita confusão: o composto lácteo e o leite em pó instantâneo, da marca Nestlé.
Só que uma matéria do blog de checagem de fatos “Estadão Verifica” considerou a postagem de alerta “fora de contexto” e “parcialmente falsa”, e ouvia como fonte de informação a própria empresa Nestlé e um porta-voz da Sociedade Brasileira de Pediatria, patrocinada pela Nestlé.
Indignados com a apuração parcial e com o objetivo de contribuir para o debate e informação do público, um grupo de integrantes da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável e ativistas parceiros enviaram uma carta para a redação do blog Estadão Verifica, pedindo correção na matéria e complementando as informações. A partir do pedido de correção da Aliança, o blog complementou a apuração, ouvindo outras três especialistas no tema, e retirou a classificação da postagem inicial como “conteúdo parcialmente falso”.
Confira a íntegra da carta da Aliança abaixo:
Carta ao blog “Estadão Verifica”, enviada no dia 20 de julho de 2020:
Como será que uma publicação de alerta sobre leite em pó (e fac-símiles) se torna um dos “principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook”? O Estadão Verifica, que checa conteúdos de postagens potencialmente falsas, debruçou-se no dia 07 de julho sobre publicações na rede social que pretendiam expor diferenças entre a composição de dois produtos com nome e identidade visual similares: o leite em pó Ninho Forti+ Instantâneo e o Ninho Forti+ Composto Lácteo. De acordo com a verificação conduzida pelo jornal, a publicação no Facebook veiculava informações falsas, pois “passa[va] a impressão de que a empresa Nestlé estaria vendendo um substituto de baixo valor nutricional, em vez de leite em pó integral”. A reportagem esclarece que não se trata disso: “na verdade, são produtos diferentes”.
O fato de serem produtos diferentes, com indicações distintas, é justamente o que as publicações que receberam a etiqueta de “fakenews” pretendiam explicitar. As postagens no Facebook, além de comparar a composição nutricional, se dedicavam a evidenciar as sutis diferenças presentes na embalagem dos dois produtos, imprescindível para que o consumidor possa adquirir aquele que deseja, seja este o leite em pó ou o composto lácteo. Segundo o jornal, “quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação”. Cabe perguntar porque seria interessante que publicações desse tipo, que equipam os consumidores para tomar decisões informadas, tenham seu alcance reduzido.
A apresentação em embalagens semelhantes de produtos tão distintos quanto compostos lácteos, fórmulas para lactentes e leite em pó é uma prática comum entre as empresas que dominam esse nicho. Em 2012, por exemplo, a Nestlé foi multada em R$ 4,6 milhões após uma denúncia ao Procon São Paulo, que alegava que as embalagens do leite em pó Ninho e do composto lácteo Ninho Fases eram suficientemente similares para induzir o consumidor ao erro. No caso do novo composto lácteo Ninho Forti+, chama atenção que o Estadão Verifica não tenha buscado conhecer e expor as razões que podem ter levado mães e profissionais de saúde a publicarem alertas nas redes sociais, especialmente porque não se trata de um debate recente.
Segundo o Guia Alimentar Para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos, os compostos lácteos são classificados como alimentos ultraprocessados, categoria que deve ser evitada na alimentação de bebês e crianças na primeira infância. O leite integral, ao contrário, faz parte da categoria de alimentos in natura e minimamente processados – aqueles que constituem a base de uma alimentação adequada e saudável. É crucial, portanto, discernir entre os dois produtos oferecidos no mercado. Houve relatos de serviços de entregas de compras que substituíram pedidos de leite integral pelo novo composto lácteo, sem informar a troca aos clientes, supostamente após receberem orientação dos representantes do fabricante sobre a equivalência dos produtos. Isso também deve ser verificado. Não é trivial adquirir, inintencionalmente, um produto com características diferentes das pretendidas. Ao dar espaço, na matéria, apenas a falas da fabricante dos produtos e a vozes consonantes, o jornal abre mão de um de seus princípios declarados como verificador de fatos: o “apartidarismo e imparcialidade”.
A partir das informações descritas na embalagem, é possível fazer a “engenharia reversa” da formulação do novo composto lácteo. A fibra alimentar adicionada ao composto é a polidextrose, um polímero de glicose não digerível, empregado frequentemente em alimentos com teor reduzido de calorias como substituto do açúcar. Segundo a tabela nutricional 25g do composto lácteo contém 2,5g de fibra alimentar, o que implica que a polidextrose compõe 10% do seu peso seco. O composto é adicionado ainda de permeado de soro de leite, subproduto industrial resultante da remoção de proteínas e outros sólidos do soro, que consiste principalmente em lactose – um açúcar simples. Uma vez que os demais ingredientes são vitaminas e minerais, as proteínas e lipídios (presentes no composto lácteo em quantidades menores do que no leite em pó) têm como única origem possível o leite integral apontado na lista de ⁸ingredientes. Cálculos simples permitem inferir que o leite em pó compõe aproximadamente 80% da massa do composto.
As alterações no perfil nutricional do produto vão além da adição de fibras, conforme alegado pela empresa. Apesar do fabricante afirmar que o novo Ninho Forti+ “não possui adição de açúcar, apenas açúcares naturalmente presentes no leite”, a presença do permeado de soro de leite indica que, quando comparado ao leite integral, o composto possui uma quantidade maior de açúcares simples em relação aos outros nutrientes. Além disso, cerca de 20% da massa total do novo Ninho Forti+ corresponde a ingredientes que contribuem para corpo e doçura, o que sem dúvida se reflete em um composto lácteo com sabor diferente do leite em pó puro.
Segundo seu próprio código de princípios, o Estadão Verifica afirma aderir a uma política de correções aberta e honesta. Esperamos que essa carta encontre ressonância entre os membros da equipe editorial e os leitores desse importante veículo, para que possamos seguir aprofundando o debate sobre assuntos tão relevantes.