02/08/2018 - Notícias
São Paulo, 01 de agosto de 2018.
Excelentíssimo Sr. Michel Temer
Presidente da República Federativa do Brasil
O Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a ACT Promoção da Saúde, a ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a Asbran – Associação Brasileira de Nutricionistas, o OPSAN/UnB – Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade de Brasília, a Ibfan Brasil, o Slow Food Brasil e o Núcleo de Alimentação e Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ vêm, em nome da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, respeitosamente solicitar uma audiência com Vossa Excelência para tratarmos da agenda regulatória relativa à revisão da rotulagem de alimentos no Brasil.
A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável é uma coalizão composta por organizações da sociedade civil de interesse público, profissionais, associações e movimentos sociais com objetivo de desenvolver e fortalecer ações coletivas que contribuam com a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada por meio do avanço em políticas públicas para a garantia da segurança alimentar e nutricional e da soberania alimentar no Brasil. A Aliança acredita que a alimentação que temos hoje é resultado da interação de elementos individuais e socioculturais. Portanto, a proteção e promoção da alimentação adequada e saudável depende da atuação nestas duas grandes dimensões, sempre articulada a ações de caráter estrutural.
Acompanhamos o processo de revisão da rotulagem nutricional de alimentos que vem sendo conduzido pela Anvisa desde 2014 de forma transparente e por meio de diálogo com todos setores da sociedade, incluindo organizações da sociedade civil, pesquisadores acadêmicos e também as principais representações da indústria de alimentos.
A imprensa noticiou em 30/07/20181 uma declaração atribuída a Vossa Excelência, sobre o modelo de rotulagem nutricional frontal de advertências, que nos causou estranhamento e preocupação. As informações que parecem ter sido apresentadas pelo presidente da Associação Brasileira de Indústrias de Alimentos – ABIA, Sr. Wilson Mello, foram incompletas, infundadas, tendenciosas e não refletem o acúmulo das discussões realizadas desde 2014 por diversos setores do governo, sociedade civil, academia e, inclusive, por representantes dessa mesma Associação.
Há consenso – não só no Brasil – de que as regras de rotulagem devem ser aprimoradas para facilitar a identificação e o entendimento das informações pelo consumidor. O consumidor precisa de condições objetivas para identificar de maneira rápida e fácil o conteúdo dos alimentos e verificar a presença de excesso de nutrientes críticos, de modo a contribuir para escolhas alimentares mais adequadas.
A revisão das regras para as informações nutricionais em curso atualmente no Brasil, sob coordenação da Anvisa, está em sintonia com a situação de saúde e nutrição do país, bem como alinhada com as políticas públicas nacionais, com as recomendações de organizações internacionais de saúde, e propostas semelhantes já foram adotadas por outros países, como Chile, Canadá, Peru e Israel ou estão em processo de definição (Uruguai).
Os hábitos alimentares na população brasileira estão cada vez mais distantes de uma alimentação adequada e saudável, com maior consumo de produtos ultraprocessados com alto teor de nutrientes que comprovadamente são fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis como obesidade, diabetes e hipertensão. O aumento dessas doenças afeta não apenas a economia e a produtividade do país como oneram o Sistema Único de Saúde, aumentando os gastos públicos em saúde. Para controlar esse cenário complexo e multicausal são necessárias medidas que garantam o direito fundamental à informação dos consumidores.
Neste caso, a garantia do exercício do direito à informação deve se dar por intermédio de uma rotulagem que propicie ao consumidor a compreensão sobre a composição do produto e os riscos atrelados ao seu consumo, o que inclui a disponibilidade de informações sobre a presença de quantidades elevadas de nutrientes potencialmente negativos para a saúde.
A Anvisa já considerou em sua avaliação de impactos regulatórios a revisão de todos os estudos apresentados e disponíveis, incluindo uma avaliação crítica sobre a limitação de algumas evidências apresentadas e os diversos modelos de rotulagem nutricional frontal já testados; a escolha de métodos científicos para comparar o desempenho dos diferentes modelos; a opinião e preferência do consumidor; a capacidade dos modelos de capturar sua atenção e compreensão do conteúdo nutricional; a percepção sobre frequência de consumo dos alimentos; a intenção de escolha e de compra de alimentos; situações reais de compra. Essa completa avaliação de impacto regulatório tem sido desenvolvida pelos técnicos da Anvisa sob o acompanhamento da Diretoria da Agência com absoluta transparência, que consideraram inclusive as experiências regulatórias internacionais, dos modelos de rotulagem nutricional frontal adotados internacionalmente, o Codex Alimentarius e as diretrizes e discussões atuais no Mercosul. O Relatório Preliminar de Análise de Impacto Regulatório sobre Rotulagem Nutricional colocado em consulta pública pela Anvisa nos meses de junho e julho do corrente ano apresenta um detalhamento completo do processo desde 2014 e conclui, após uma extensa e completa revisão de evidências científicas, que o modelo de rotulagem nutricional frontal de advertências é o mais apropriado para os objetivos acima expostos.
Em estudo publicado em renomada revista científica internacional foi avaliada a proposta de aprimoramento da rotulagem nutricional na população brasileira e comprovou-se a superioridade do modelo de advertências na capacidade de identificar corretamente a presença da quantidade excessiva de nutrientes críticos em relação ao modelo de Semáforo Nutricional apresentado pela ABIA2.
Entendemos e partilhamos das preocupações com o crescimento e a geração de empregos. Sabemos do impacto negativo que uma crise econômica tem para a vida dos brasileiros. Contudo, não podemos considerar o lado econômico de apenas um setor em detrimento da saúde da população. Com a tendência atual de aumento nos casos de diabetes e obesidade, até 2050, os custos diretos relacionados à atenção à saúde com obesidade chegarão a 38 bilhões de Reais em 2050 – quase o dobro daquele de 2010 (aproximadamente 21,5 bilhões de Reais)3. Os custos com diabetes representam uma parte importante destes custos e chegarão a aproximadamente 32 bilhões em 2050. Estes custos, no entanto, não incluem custos indiretos como perda de produtividade, absenteísmo e aposentadoria precoce que podem representar cerca de 45% dos custos totais com diabetes4. Os custos reais com diabetes no país podem portanto chegar a quase 47 bilhões de Reais em 2050.
Do ponto de vista econômico, experiências similares como a chilena demonstram que a indústria adapta seu portfólio para alimentos mais saudáveis. Políticas mais restritivas que incidem diretamente no preço de produtos alimentícios não provocaram nenhum impacto no aumento do desemprego como foi alardeado pela indústria no México5 e nem nos EUA6. No Brasil, observamos que após a publicação do Decreto 9.394/2018 sobre tributação apesar de ter sido combatido pela indústria, não causou o fechamento de nenhuma fábrica.
Todos os grandes avanços na defesa do consumidor e da saúde pública foram, em algum momento, combatidos pelas multinacionais (ex: política de genéricos, restrições ao tabaco e até mesmo os ataques à saúde pública universal), mas o Brasil segue perseverando e adotando políticas públicas avançadas em defesa de sua população.
Por fim, entendemos que o limite do republicanismo não pode ser ultrapassado com insinuações e pedidos descabidos sobre a forma e perfil de indicação de presidentes de agências reguladoras, tal como feita pelo presidente da ABIA. Evitar o loteamento de cargos e a pressão de grupos de interesse políticos-partidários foi o que norteou a criação das agências reguladoras e essa norma, de privilegiar a capacitação técnica, continua a orientar as iniciativas de elevação dos padrões republicanos, como ocorreu com a sanção da Lei das Estatais (13.303/2016). Esse tipo de insinuação pública para a Presidência da República, vindo de uma entidade representativa da indústria, não passará sem os devidos questionamentos.
Por natureza, a preocupação maior do setor produtivo se concentra nas vendas. O ímpeto da Abia em sua demanda e em suas manifestações se dá em detrimento da saúde pública brasileira. Considerando a gravidade e urgência do quadro de morbimortalidade relacionada a doenças que têm entre o principal fator de risco a alimentação e que o compromisso maior do governo brasileiro é com sua população, solicitamos uma audiência com Vossa Excelência para apresentação dos argumentos e estudos que demonstram de maneira inequívoca tanto a necessidade da reformulação da rotulagem nutricional dos alimentos como a superioridade da proposta de advertência frontal.
Atenciosamente,
Ana Paula Bortoletto Martins
Representante do Idec no Comitê Gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
Referências citadas na carta:
1 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/07/temer-critica-proposta-de-rotulagem-de-alimentos-e-marca-reuniao-com-industria.shtml
2 Khandpur N et al. Are Front-of-Package Warning Labels More Effective at Communicating Nutrition Information than Traffic-Light Labels? A Randomized Controlled Experiment in a Brazilian Sample. Nutrients, 10:688-703, 2018.
3 Rtveladze K, Marsh T, Webber L, Kilpi F, Levy D, Conde W, McPherson K, Brown M. Health and economic burden of obesity in Brazil. PLoS One. 2013 Jul 11;8(7):e68785.
4 Borges NB, Ferraz MB, Chacra AR. The cost of type 2 diabetes in Brazil: evaluation of a diabetes care center in the city of São Paulo, Brazil. Diabetol Metab Syndr. 2014 Nov 8;6(1):122.
5 Guerrero-López CM MM et al. Employment changes associated with the implementation of the sugar-sweetened beverage and the nonessential energy dense food taxes in Mexico. Preventive Medicine 2017, 105(Suppl): S43-S49.
6 Powell LM et al. Employment impact of sugar-sweetened beverage taxes. American Journal of Public Health 2014; 104(4): 672-7.
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